sábado, 23 de julho de 2022

Capítulo 1 - Santa Regra



Capítulo 1

DOS GÊNEROS DE MONGES

É sabido que há quatro gêneros de monges. [2]O primeiro é o dos cenobitas, isto é, o monasterial, dos que militam sob uma Regra e um Abade.

[3]O segundo gênero é o dos anacoretas, isto é, dos eremitas, daqueles que, não por um fervor inicial da vida monástica, mas através de provação diuturna no mosteiro, 

[4]instruídos então na companhia de muitos aprenderam a lutar contra o demônio 

[5]e, bem adestrados nas fileiras fraternas, já estão seguros para a luta isolada do deserto, sem a consolação de outrem, e aptos para combater com as próprias mãos e braços, ajudando-os Deus, contra os vícios da carne e dos pensamentos.

[6]O terceiro gênero de monges, e detestável, é o dos sarabaítas, que, não tendo sido provados, como o ouro na fornalha, por nenhuma regra, mestra pela experiência, mas amolecidos como numa natureza de chumbo, 

[7]conservam-se por suas obras fiéis ao século, e são conhecidos por mentir a Deus pela tonsura. 

[8]São aqueles que se encerram dois ou três ou mesmo sozinhos, sem pastor, não nos apriscos do Senhor, mas nos seus próprios; a satisfação dos desejos é para eles lei, 

[9]visto que tudo quanto julgam dever fazer ou preferem, chamam de santo, e o que não desejam reputam ilícito.

[10]O quarto gênero de monges é o chamado dos giróvagos, que por toda a sua vida se hospedam nas diferentes províncias, por três ou quatro dias nas celas de outros monges, 

[11]sempre vagando e nunca estáveis, escravos das próprias vontades e das seduções da gula, e em tudo piores que os sarabaítas. 

[12]Sobre o misérrimo modo de vida de todos esses é melhor calar que dizer algo.

[13]Deixando-os de parte, vamos dispor, com o auxilio do Senhor, sobre o poderosíssimo gênero dos cenobitas.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Santa Regra de Nosso Pai São Bento - Prólogo




Prólogo

1. Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai 2. para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela desídia da desobediência. 3. A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei. 4. Antes de tudo, quando encetares algo de bom, pede-lhe com oração muito insistente que seja por ele plenamente realizado 5. a fim de que nunca venha a entristecer-se, por causa das nossas más ações, aquele que já se dignou contar-nos no número de seus filhos 6. assim, pois, devemos obedecer-lhe em todo tempo, usando de seus dons a nós concedidos para que não só não venha jamais, como pai irado, a deserdar seus filhos 7. nem tenha também, qual Senhor temível, irritado com nossas más ações, de entregar-nos à pena eterna como péssimos servos que o não quiseram seguir para a glória. 8. Levantemo-nos então finalmente, pois a Escritura nos desperta dizendo: "Já é hora de nos levantarmos do sono". 9. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: 10. "Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que se endureçam vossos corações" 11. e de novo: "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas". 12. E que diz? – "Vinde, meus filhos, ouvi-me, eu vos ensinarei o temor do Senhor. 13. Correi enquanto tiverdes a luz da vida, para que as trevas da morte não vos envolvam". 14. E procurando o Senhor o seu operário na multidão do povo, ao qual clama estas coisas, diz ainda: 15. "Qual é o homem que quer a vida e deseja ver dias felizes?" 16. Se, ouvindo, responderes: "Eu", dir-te-á Deus:17. "Se queres possuir a verdadeira e perpétua vida, guarda a tua língua de dizer o mal e que teus lábios não profiram a falsidade, afasta-te do mal e faze o bem, procura a paz e segue-a". 18. E quando tiveres feito isso, estarão meus olhos sobre ti e meus ouvidos junto às tuas preces, e antes que me invoques dir-te-ei: "Eis-me aqui". 19. Que há de mais doce para nós, caríssimos irmãos, do que esta voz do Senhor a convidar-nos? 20. Eis que pela sua piedade nos mostra o Senhor o caminho da vida. 21. Cingidos, pois, os rins com a fé e a observância das boas ações, guiados pelo Evangelho, trilhemos os seus caminhos para que mereçamos ver aquele que nos chamou para o seu reino. 22. Se queremos habitar na tenda real do acampamento desse reino, é preciso correr pelo caminho das boas obras, de outra forma nunca se há de chegar lá. 23. Mas, com o profeta, interroguemos o Senhor, dizendo-lhe: "Senhor, quem habitará na vossa tenda e descansará na vossa montanha santa?". 24. Depois dessa pergunta, irmãos, ouçamos o Senhor que responde e nos mostra o caminho dessa mesma tenda, 25. dizendo: "É aquele que caminha sem mancha e realiza a justiça; 26. aquele que fala a verdade no seu coração, que não traz o dolo em sua língua, 27. que não faz o mal ao próximo e não dá acolhida à injúria contra o seu próximo". 28. É aquele que quando o maligno diabo tenta persuadi-lo de alguma coisa, repelindo-o das vistas do seu coração, a ele e suas sugestões, redu-lo a nada, agarra os seus pensamentos ainda ao nascer e quebra-os de encontro ao Cristo. 29.São aqueles que, temendo o Senhor, não se tornam orgulhosos por causa de sua boa observância, mas, julgando que mesmo as coisas boas que têm em si não as puderam por si, mas foram feitas pelo Senhor, 30. glorificam Aquele que neles opera, dizendo com o profeta: "Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao vosso nome dai Glória". 31. Como, aliás, o Apóstolo Paulo não atribuía a si próprio coisa alguma de sua pregação, quando dizia: "Pela graça de Deus sou o que sou" 32. e ainda: "Quem se glorifica, que se glorifique no Senhor". 33. Eis porque no Evangelho diz o Senhor: "Àquele que ouve estas minhas palavras e as põe em prática, compará-lo-ei ao homem sábio que edificou sua casa sobre a pedra, 34. cresceram os rios, sopraram os ventos e investiram contra a casa; e ela não ruiu porque estava fundada sobre pedra". 35. Em conclusão espera o Senhor todos os dias que nos empenhemos em responder com atos às suas santas exortações. 36. Por essa razão, os dias desta vida nos são prolongados como tréguas para a emenda dos nossos vícios, 37. conforme diz o Apóstolo: "Então ignoras que a paciência de Deus te conduz à penitência?". 38. Pois diz o bom Senhor: "Não quero a morte do pecador, mas sim que se converta e viva". 39. Como, pois, irmãos, interrogássemos o Senhor a respeito de quem mora em sua tenda, ouvimos em resposta, qual a condição para lá habitar: a nós compete cumprir com a obrigação do morador! 40. Portanto, é preciso preparar nossos corações e nossos corpos para militar na santa obediência dos preceitos; 41. e em tudo aquilo que nossa natureza tiver menores possibilidades, roguemos ao Senhor que ordene a sua graça que nos preste auxílio. 42. E, se, fugindo das penas do inferno, queremos chegar à vida eterna, 43. enquanto é tempo, e ainda estamos neste corpo e é possível realizar todas essas coisas no decorrer desta vida de luz, 44. cumpre correr e agir, agora, de forma que nos aproveite para sempre. 45. Devemos, pois, constituir uma escola de serviço do Senhor. 46.Nesta instituição esperamos nada estabelecer de áspero ou de pesado. 47. Mas se aparecer alguma coisa um pouco mais rigorosa, ditada por motivo de eqüidade, para emenda dos vícios ou conservação da caridade 48. não fujas logo, tomado de pavor, do caminho da salvação, que nunca se abre senão por estreito início. 49. Mas, com o progresso da vida monástica e da fé, dilata-se o coração e com inenarrável doçura de amor é percorrido o caminho dos mandamentos de Deus. 50. De modo que não nos separando jamais do seu magistério e perseverando no mosteiro, sob a sua doutrina, até a morte, participemos, pela paciência, dos sofrimentos do Cristo a fim de também merecermos ser co-herdeiros de seu reino. Amém.

COMMONITORIUM


 

COMMONITORIUM  

Notas para conhecer a verdadeira Fé 

Introdução  

1. Dado que a Escritura nos aconselha: "Interroga teu pai e ele te contará; os teus  avós, e eles te dirão". (Dt 32,7); "Ouve as palavras dos sábios" (Pr22,17); e  também: "Meu filho, não te esqueças da minha lei, e guarda no teu coração os  meus preceitos" (Pr 3,1), a mim, Peregrino, último entre todos os servos de Deus,  me parece que é coisa de não pouca utilidade escrever os ensinamentos que  recebi fielmente dos Santos Padres. Para mim isto é absolutamente  imprescindível, a causa de minha debilidade, para ter assim ao alcance das mãos  um auxílio que, com uma leitura assídua, supra as deficiências de minha memória.  Induzem-me a empreender este trabalho, ademais, não só a utilidade desta obra,  mas também a consideração do tempo e a oportunidade do lugar. Em relação ao  tempo, já que ele nos tira tudo o que há de humano, também nós devemos, em  compensação, roubar-lhe algo que nos seja gozoso para a vida eterna, tanto mais  quanto que ver aproximar-se o terrível juízo divino nos convida a pôr maior  empenho no estudo de nossa Fé; por outro lado, a astúcia dos novos hereges  reclama de nós uma vigilância e uma atenção cada vez maiores. Em relação ao  lugar, porque afastados da multidão e da agitação da cidade,habitamos num lugar  bem separado no qual, na cela tranqüila de um mosteiro, se pode pôr em prática,  sem medo de distrair-se, o que canta o salmista: "Desisti – disse ele – e  reconhecei que sou Deus". (Sl 45,11) Aqui tudo se harmoniza para que eu alcance  minhas aspirações. Durante muito tempo fui perturbado pelas diferentes e tristes  peripécias da vida secular. Graças à inspiração de Jesus Cristo, consegui por fim  refugiar-me no porto da Religião, sempre muito seguro para todos. Deixados para  trás os ventos da vaidade e do orgulho, agora me esforço em aplacar a Deus  mediante o sacrifício da humildade cristã, para poder assim evitar não só os  naufrágios da vida presente, mas também as chamas da vida futura. Posta minha  confiança no Senhor, desejo, pois, iniciar a obra que me insta, cuja finalidade é  colocar por escrito tudo que nos têm sido transmitido por nossos pais e que temos  recebido em depósito. Meu intento é expor cada coisa com a fidelidade de um  relator, e não com a presunção de querer fazer uma obra original. Não obstante,  me aterei a esta lei ao escrever: não dizer tudo, mas resumir o essencial com  estilo fácil e acessível, prescindindo da elegância e do maneirsimo, de maneira  que a maior parte das idéias pareçam melhor enunciadas que explicadas. Que  escrevam brilhantemente e com finura aqueles que se sentem levados a isto pela  profissão ou pela confiança em seu próprio talento. No que a mim se refere, já  tenho muito em preparar estas anotações para ajudar a minha memória, ou melhor, a minha falta de memória. Não obstante, não deixarei de me empenhar,  com a ajuda de Deus, em corrigi-las e completá-las cada dia, meditando no que  tenho aprendido. Assim, pois,caso estas notas se percam ou acabem caindo em  mãos de pessoas santas, rogo a estas que não se apressem em jogar-me na cara  que algo do que nestas notas haja espera todavia ser retificado e corrigido,  segundo minha promessa.  

Regra para distinguir a Verdade Católica do erro 

  2. Havendo interrogado com freqüência e com maior cuidado e atenção a  inúmeras pessoas, sobressalentes em santidade e doutrina, sobre como distinguir  por meio de uma regra segura, geral e normativa, a verdade da Fé Católica da  falsidade perversa da heresia, quase todas me têm dado a mesma resposta:  "Todo cristão que queira desmascarar as intrigas dos hereges que brotam ao  nosso redor,evitar suas armadilhas e se manter íntegro e incólume numa fé  incontaminada, deve,com a ajuda de Deus, apetrechar sua fé de duas maneiras:  com a autoridade da lei divina ante tudo, e com a tradição da Igreja Católica". Sem  embargo, alguém poderia objetar: Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais  que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a  autoridade da interpretação da Igreja? Precisamente porque a Escritura, por causa  de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e  universal. De fato, as mesmas palavras são interpretadas de maneira diferente por  uns e por outros. Se pode dizer que tantas são as interpretações quantos são os  leitores. Vemos, por exemplo, que Novaciano explica a Escritura de um modo,  Sabélio de outro, Donato, Eunomio, Macedônio, deoutro; e de maneira diversa a  interpretam Fotino, Apolinar, Prisciliano, Joviano,Pelágio, Celestino, e em nossos  dias, Nestório. É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas  tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça  seguindo a pauta do sentir católico. Na Igreja Católica deve-se ter maior cuidado  para manter aquilo em que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Isto é a  verdadeira e propriamente católico, segundo a idéia de universalidade que se  encerra na mesma etimologia da palavra. Mas isto se conseguirá se nós seguimos  a universalidade, a antiguidade e o consenso geral. Seguiremos a universalidade  se confessamos como verdadeira e única fé a que a Igreja inteira professa em  todo o mundo; a antiguidade, se não nos separamos de nenhuma forma dos  sentimentos que notoriamente proclamaram nossos santos predecessores e pais;  o consenso geral, por último, se, nesta mesma antiguidade, abraçamos as  definições e as doutrinas de todos, ou de quase todos, os Bispos e Mestres.  

Exemplo de como aplicar a regra  

  3. Qual deverá ser a conduta de um cristão católico, se alguma pequena parte da  Igreja se separa da comunhão na Fé universal?- Não cabe dúvida de que deverá  antepor a saúde do corpo inteiro a um membro podre e contagioso. Mas, e se for  uma novidade herética que não está limitada a um pequeno grupo, mas que  ameaça contagiar à Igreja toda? - Em tal caso, o cristão deverá fazer todo o  possível para agarrar-se à antiguidade, a qual não pode evidentemente ser alterada por nenhuma nova mentira. E se na antiguidade se descobre que um erro  tem sido compartilhado por muitas pessoas, ou inclusive toda uma cidade, ou por  uma região inteira?- Neste caso porá o máximo cuidado em preferir os decretos -  se os tiver - de um antigo Concílio Universal, à temeridade e à ignorância de todos  aqueles. E se surge uma nova opinião acerca da qual nada tenha sido ainda  definido? - Então indagará e confrontará as opiniões de nossos maiores, mas  somente daqueles que sempre permaneceram na comunhão e na fé da única  Igreja Católica e vieram a ser mestres provados da mesma. Tudo o que ache que,  não por um ou dois somente, mas por todos juntos de pleno acordo, tenha sido  mantido, escrito e ensinado abertamente, freqüente e constantemente, sabe que  ele também pode crer sem vacilação alguma.  

Exemplos históricos de recurso à  Universalidade e Antiguidade contra o erro. 

 4. Para realçar melhor aquilo que digo, documentarei com exemplos minhas  asserções, me detendo um pouco mais, para que não aconteça que o desejo de  ser breve a todo custo me faça deixar passar coisas importantes. No tempo de  Donato, de quem tomaram o nome os donatistas, uma parte considerável da  África seguiu as delirantes aberrações deste homem. Esquecendo-se de seu  nome, sua religião e sua profissão de fé, antepuseram à Igreja a sacrílega  temeridade de um só indivíduo. Os que se opuseram então ao ímpio cisma  permaneceram unidos às Igrejas do mundo inteiro e só eles entre todos os  africanos puderam permanecer a salvo no santuário da Fé católica. Agindo assim,  deixaram àqueles que viriam o exemplo egrégio de como se deve preferir sempre  o equilíbrio de todos os demais à loucura de uns poucos. Um caso semelhante  aconteceu quando o veneno da heresia ariana contaminou não apenas uma  pequena região, mas o mundo inteiro, até o ponto de que quase todos os bispos  latinos cederam ante a heresia, alguns obrigados com violência, outros sacerdotes  diminuídos e enganados. Uma espécie de névoa ofuscou então suas mentes, e já  não podiam distinguir, no meio de tanta confusão de idéias, qual era o caminho  seguro que deviam seguir. Somente o verdadeiro e fiel discípulo de Cristo que  preferiu a antiga Fé à nova perfídia não foi contaminado por aquela peste  contagiosa. O que se sucedeu então mostra suficientemente os graves males a  que podem dar lugar um dogma inventado. Tudo se revolucionou: não só  relações, parentescos, amizades, famílias, mas também cidades, povos, regiões.  Até mesmo o Império Romano foi sacudido até seus fundamentos e transtornado,  de cima a baixo, quando a sacrílega inovação ariana, como nova Bellona ou Fúria,  seduziu inclusive o Imperador, o primeiro de todos os homens. Depois de ter  submetido as suas novas leis inclusive aos mais insignes dignatários da corte, a  heresia começou a perturbar, transtornar, ultrajar todas as coisas, privada e  pública, profana e religiosa. Sem fazer distinção entre o bom e o mau, entre o  verdadeiro e o falso, atacava a mão livre todos que estivessem à sua frente. As  esposas foram desonradas, as viúvas ultrajadas, as virgens profanadas. Se  demoliram mosteiros, se dispersaram os clérigos; os diáconos foram açoitados  com varas e os sacerdotes foram mandados ao exílio. Cárceres e minas se  encheram de santos. Muitos, expulsos das cidades, andavam errantes sem pousada até que nos desertos, nas covas, entre as rochas abruptas pereceram  miseravelmente, vítimas das feras selvagens e da desnudez, fome e sede. E qual  foi a causa de tudo isto? Uma só: a introdução de crenças humanas em lugar do  dogma vindo do céu. Isto ocorre quando, pela introdução de uma inovação vazia,  a antiguidade fundamentada nos mais seguros embasamentos é demolida, velhas  doutrinas são pisoteadas, os decretos dos Padres são desgarrados, as definições  de nossos maiores são anuladas; e isto, sem que a desenfreada concupiscência  de novidades profanas consiga manter-se nos nítidos limites de uma tradição  sagrada e incontaminada.  

Testemunho de Santo Ambrósio  

  5. É possível que alguém pense que eu invento ou exagero por amor à  Antiguidade e ódio às novidades? Quem quer que assim pense, preste pelo  menos atenção a Santo Ambrósio, que, em seu segundo livro dedicado ao  Imperador Graciano, deplorando a perversidade dos tempos, exclamava: "Deus  todo poderoso, nossos sofrimentos e nosso sangue já têm resgatado  suficientemente as matanças dos confessores, o exílio de bispos e tantas outras  coisas ímpias e nefandas. Está mais que claro que quem tem violado a fé não  podem estar seguros". E no terceiro livro da mesma obra diz: "Observamos  fielmente os preceitos de nossos Pais, e não rompemos com insolente temeridade  o selo da herança. Porque nem os senhores, nem as Potestades, nem os Anjos,  nem os Arcanjos ousaram abrir aquele profético livro selado: somente a Cristo  compete o direito de rompê-lo". "Quem de nós se atreveria a romper o selo do livro  sacerdotal, selado pelos confessores e consagrado por tantos mártires? Inclusive  aqueles mesmos que, constrangidos pela violência o violaram, imediatamente  rechaçaram o engano em que haviam caído e retornaram à Fé antiga. Aqueles  que não ousaram violá-lo, se tornaram confessores e mártires. Como poderíamos  renegar sua fé, se celebramos precisamente sua vitória?". A todos eles vai, ó  venerável Ambrósio, nosso louvor, nosso elogio, nossa admiração! Quem seria tão  estulto que, não podendo igualá-los, não deseje ao menos imitar estes homens, a  quem nenhuma violência conseguiu desviá-los da fé dos Padres? Ameaças,  lisonjas, esperança de vida, temor à morte, guardas, corte, imperador,  autoridades, não serviram de nada: homens e demônios foram impotentes ante  eles. Seu tenaz apegamento à Fé antiga os fez dignos, aos olhos do Senhor, de  uma grande recompensa. Por meio deles, Ele quis levantar as Igrejas prostradas,  voltar a infundir nova vida às comunidades cristãs esgotadas, restituir aos  sacerdotes as coroas caídas. Com as lágrimas dos bispos que permaneceram  fiéis, Deus tem limpado, como com uma fonte celestial, não as fórmulas materiais,  mas a mancha moral da impiedade nova. Por meio deles, enfim, tem reconduzido  ao mundo inteiro- todavia sacudido pela violenta e repentina tempestade da  heresia - da nova perfídia à Fé antiga, da recente insana à primitiva saúde, da  cegueira nova à luz de antes. Mas o que devemos destacar principalmente neste  valor quase divino dos confessores é que defenderam a fé antiga da Igreja e não a  crença de parte alguma dela. Nunca teria sido possível que tão grandes homens  se desdobrassem em um esforço sobre-humano para sustentar as conjecturas  errôneas e contraditórias de um ou dois indivíduos, ou que se dedicassem a fundo em favor da irreflexiva opinião de uma pequena província. Nos decretos e nas  definições de todos os bispos da Santa Igreja, herdeiros da Verdade, é no que têm  crido, preferindo se expor à morte a trair a antiga fé universal. Assim mereceram  alcançar uma glória tão grande, que foram considerados não só confessores, mas,  com todo direito, príncipes dos confessores.  

Testemunho do Papa Estevão  

6. O exemplo verdadeiramente grande e divino destes Bem-aventurados deveria  ser objeto constante de meditação para todo o verdadeiro católico. Eles, irradiando  como a um candelabro de sete braços a luz septiforme do Espírito Santo, têm  mostrado, de maneira claríssima aos que vieram depois, como que prevendo o  futuro, diante de qualquer verborréia jactanciosa do erro, que se pode aniquilar a  audácia de inovações ímpias com a autoridade da antiguidade consagrada.  Quanto aos demais, esta maneira de atuar não é novidade na Igreja; efetivamente,  nela sempre se observou que quanto mais se cresce o fervor da piedade, com  maior presteza se põe barreira às novas invenções. Tem-se uma grande  quantidade de exemplos, mas para não alongar-me muito, citarei apenas um,  adequadíssimo para nossa finalidade, tomando-o da história da Sé Apostólica.  Todos poderão ver, com mais claridade que a própria luz, com quanta fortaleza,  diligência e zelo os veneráveis sucessores dos santos Apóstolos têm defendido  sempre a integridade da doutrina recebida uma vez para sempre. Sucedeu que o  bispo de Cartago, Agripino, de piedosa memória, teve a idéia de fazer que os  hereges fossem rebatizados; e isto contra a Escritura, a norma da Igreja universal,  a opinião de seus colegas, os costumes e os usos dos Padres. Isto deu origem a  grandes males, porque não só oferecia a todos os hereges um exemplo de  sacrilégio, mas também foi ocasião de erro para não poucos católicos. Dado que  em todas as partes se protestava contra esta novidade, e em cada sítio os bispos  tomavam diferentes posturas com respeito a ela, segundo lhes ditava seu próprio  zelo, o Papa Estevão, de santa memória, bispo da Sé Apostólica, se somou com  maior força que nada à oposição de seus colegas, pois entendia - acertadamente,  a meu ver - que devia superar a todos na devoção à fé tanto quanto os superava  pela autoridade de sua Sé. Escreveu então uma carta à África e decretou nestes  termos: "Nenhuma novidade, mas só o que tem sido transmitido". Sabia aquele  homem santo e prudente que a mesma natureza da religião exige que tudo seja  transmitido aos filhos com a mesma fidelidade com a qual tenha sido recebido dos  pais, e que, ademais, não nos é lícito levar e trazer a religião por onde nos pareça,  mas que melhor somos nós os que temos que segui-la por onde quer que ela nos  conduza. E é próprio da humanidade e da responsabilidade cristã não transmitira  quem nos sucedam nossas próprias opiniões, mas conservar o que foi recebido de  nossos superiores. Como acabou, pois, a situação? Como haveria de acabar  senão da maneira comum e normal? Se agarraram à antiguidade e rechaçou-se a  novidade. Então não houve defensores da inovação? Ao contrário, houve um  tal desdobramento de ingênios, uma tal profusão de eloqüência, um número  tão grande de partidários, tanta verossimiltude nas teses, tal acúmulo de citações  da Sagrada Escritura, ainda que interpretada em um sentido totalmente novo e  errado, que de nenhuma maneira, creio eu, se poderia superar toda aquela concentração de forças, se a inovação tão fortemente abraçada, defendida,  louvada, não tivesse vindo abaixo por si mesma, precisamente por causa de sua  novidade. O que ocorreu com os decretos daquele concílio africano e quais foram  suas conseqüências? Graças a Deus não serviram para nada. Tudo se dissipou  como um sonho e uma fábula e foi abolido como coisa inútil, desprezado, não  levado em conta. Mas foi aqui que se produziu uma situação paradoxal. Os  autores daquela opinião são considerados católicos, e em troca seus seguidores  são hereges; os mestres foram perdoados e os discípulos condenados. Quem  escreveu os livros errôneos serão chamados filhos do reino, enquanto que o  inferno acolherá a quem se fazem seus defensores. Quem pode ser tão louco até  o ponto de pôr em dúvida que o beato Cipriano, luz esplendorosa entre todos os  santos bispos e mártires, reina junto com seus colegas eternamente com Cristo?  E, ao contrário, quem poderia ser tão sacrílego que negasse que os donatistas e  as outras pestes, que presunçosamente querem rebatizar apoiando-se na  autoridade daquele concílio, arderão eternamente com o diabo?  

Astúcia tática dos hereges  

7. A meu modo de ver, um juízo tão severo foi pronunciado pelo Céu, por causa  da malícia destes mistificadores, que não duvidavam em encobrir com outro nome  as heresias que fabricavam. Com freqüência se apropriavam de passagens  complicadas e pouco claras de algum autor antigo, os quais, por sua mesma falta  de caridade parecia que concordavam com suas teorias; assim simulavam que  não eram os primeiros nem os únicos que pensavam dessa maneira. Esta falta de  honradez eu a qualifico de duplamente odiosa, porque não tem escrúpulo algum  em fazer que outros bebam o veneno da heresia, e porque mancham a memória  de pessoas santas, como se espalhassem ao vento, com mão sacrílega, suas  cinzas dormidas. Fazendo reviver determinadas opiniões, que melhore era deixar  enterradas no silêncio, levam a cabo uma difamação. Nisto seguem a perfeição os  passos de seu primeiro modelo Cam, que não só não se preocupou de cobrir a  nudez de Noé, mas que a fez notar aos demais para zombar dele. Por causa de  uma ofensa tão grave à piedade filial, até seus descendentes estiveram incluídos  na maldição que mereceu seu pecado. Seu comportamento foi totalmente  contrário ao de seus irmãos, os quais se negaram a profanar com seu olhar a  venerável nudez de seu pai e a expô-la aos olhares de outros, mas que, como  está escrito, o cobriu acercando-se de braços. Não aprovaram nem censuraram o  erro daquele homem santo, e por isso mereceram uma esplêndida bênção, que se  estendeu a seus filhos de geração em geração. Mas voltemos a nosso tema.  Devemos ter horror, como se tratasse de um delito, de alterar a fé e corromper o  dogma; não só a disciplina da constituição da Igreja nos impede fazer uma coisa  assim, mas também a censura da autoridade apostólica. Todos conhecemos com  quanta firmeza, severidade e veemência São Paulo se lança contra alguns que,  com incrível frivolidade, se afastaram em pouquíssimo tempo daquele que os  havia chamado à graça de Cristo, para passar-se a outro Evangelho, ainda que a  verdade é que não existe outro Evangelho; ademais, se haviam rodeado de uma  turba de mestres que secundavam seus próprios caprichos, e apartavam os  ouvidos da verdade para os dar às fábulas, incorrendo assim na condenação de ter violado a fé primeira. Se deixaram enganar por aqueles de quem escreve o  mesmo Apóstolo em sua carta aos irmãos de Roma: "Rogo-vos, irmãos, que  desconfieis daqueles que causam divisões e escândalos, apartando-se da  doutrina que recebestes. Evitai-os! Esses tais não servem a Cristo nosso Senhor,  mas ao próprio ventre. E com palavras adocicadas e linguagem lisonjeira  enganam os corações simples". (Rm 16,17-18) Se introduzem nas casas e fazem  escravas às mulheres carregadas de pecados e movidas por toda classe de  desejos, as quais, ainda que sempre dispostas a instruir-se, não conseguem  chegar nunca ao conhecimento da verdade. Charlatães e sedutores, revolucionam  famílias inteiras, ensinando o que não convêm, com o fim de adquirir uma vil  ganância. Homens de mente corrompida e desqualificados em matéria de fé,  presunçosos e ignorantes, que se envolvem em discussões e em debates  estéreis; privados da verdade, pensam que a piedade é algo lucrativo. Como não  tem nada em que se ocupar, se dedicam ao perambulismo, e não só estão  ociosos, mas que são falastrões e indiscretos, falando do que não devem. Têm  depreciado uma boa consciência e naufragam na fé. Seus palavreados fúteis e  profanos fazem que cada vez vão mais adiante na impiedade, e essas palavras  sujas corroem como gangrena. Com razão se escreveu deles: "Mas não irão  longe, porque será manifesta a todos a sua insensatez, como o foi a daqueles dois  (Jannes e Mambres)". (2Tm 3,9)  

Advertência de São Paulo aos Gálatas  

8. Indivíduos desta ralé, que percorriam as províncias e as cidades mercadejando  com seus erros, chegaram até os Gálatas. Estes, ao escutá-los, experimentaram  como uma certa repugnância pela verdade, rechaçaram o maná celestial da  doutrina católica e apostólica e se deleitaram com a sórdida novidade da heresia.  A autoridade do Apóstolo se manifestou então com maior severidade: "Mas, ainda  que alguém - nós ou um anjo baixado do céu - vos anunciasse um evangelho  diferente do que vos temos anunciado, que ele seja anátema". (Gl 1,8) E POR  QUE DISSE SÃO PAULO AINDA QUE ALGUÉM - NÓS E NÃO AINDA QUE EU  MESMO? PORQUE QUIS DIZER QUE SE INCLUSIVE PEDRO, ANDRÉ, JOÃO,  OU O COLÉGIO INTEIRO DOS APÓSTOLOS ANUNCIASSE UM EVANGELHO  DIFERENTE DO QUE VOS TEMOSANUNCIADO, QUE ELE SEJA ANÁTEMA.  TREMENDO RIGOR, COM ELE QUE, PARA AFIRMAR A FIDELIDADE Á FÉ  PRIMITIVA,NÃO SE EXCLUI NEM A SI MESMO NEM AOS OUTROS  APÓSTOLOS. Mas isto não é tudo: ainda que um anjo baixado do céu vos  anunciasse um Evangelho diferente do que vos temos anunciado, que ele seja  anátema. Para salvaguardar a fé entregue uma vez para sempre, não lhe bastou  recordar a natureza humana, mas que quis também incluir a excelência angélica:  ainda que nós - diz - ou um anjo do céu. Não é que os santos ou os anjos do céu  possam pecar, mas que é para dizer: inclusive se acontecesse isso que não pode  acontecer, qualquer que fosse o que tentasse modificar a fé recebida, este tal seja  anátema. Mas talvez o Apóstolo escreveu estas palavras às pressas, movido mais  por um ímpeto passional humano que por inspiração divina! Continua, sem  embargo, e repete com insistência e com força a mesma idéia, para fazer que seja  assimilada: "Repito aqui o que acabamos de dizer: se alguém pregar doutrina diferente da que recebestes, seja ele excomungado!" (Gl 1,9)Não disse: se um lhe  anuncie um Evangelho diferente do nosso, seja bendito, louvado, acolhido; mas  disse: seja excomungado, ou seja, separado, cortado, excluído, com o fim de que  o contágio funesto de uma ovelha infectada não se estenda, com sua presença  mortífera, a todo o rebanho inocente de Cristo.  

Valor universal da advertência paulina  

  9. Poderia se pensar que estas coisas foram ditas apenas para os Gálatas. Neste  caso, também as demais recomendações que se fazem no resto da carta seriam  válidas somente para os Gálatas. Por exemplo: "Se vivemos pelo Espírito,  andemos também de acordo com o Espírito. Não sejamos ávidos da vanglória.  Nada de provocações, nada de invejas entre nós". (Gl 5,25-26) Pois se isto nos  parece absurdo, ele quer dizer que essas recomendações se dirigem a todos os  homens e não apenas aos Gálatas; tanto os preceitos que se referem ao dogma,  como as obrigações morais, valem para todos indistintamente. Assim, pois, como  a ninguém é lícito provocar ou invejar o outro, tampouco a ninguém é lícito aceitar  um Evangelho diferente do que a Igreja Católica ensina em todas as partes. Então  o anátema de Paulo contra quem anuncia um Evangelho diferente do que havia  sido anunciado valia apenas para aqueles tempos e não para hoje? Neste caso,  também o que se prescreve no resto da carta: "Digo, pois:deixai-vos conduzir pelo  Espírito, e não satisfareis os apetites da carne". (Gl 5,16), já não nos obrigaria  hoje. Se pensar uma coisa assim é ímpio e pernicioso,necessariamente há de se  concluir que, posto que os preceitos de ordem moral têm de ser observados em  todos os tempos, também os que têm por objeto a imutabilidade da fé obrigam  igualmente em todo tempo. Por conseguinte, anunciar aos cristãos alguma coisa  diferente da doutrina tradicional não era, não é e não será lícito; e sempre foi  obrigatório e necessário, como é todavia agora e será sempre e no futuro,  reprovar a quem faz bandeira de uma doutrina diferente da recebida. Diante  disso, haverá alguém tão ousado que anuncie uma doutrina diferente da que é  anunciada pela Igreja, ou será tão frívolo que abrace outra fé diferente da  que recebeu da Igreja? Para todos, sempre, e em todas as partes, por meio de  suas cartas, se levanta com força e com insistência o grito daquele instrumento  eleito, daquele Doutor das Gentes, daquele sino apostólico, daquele estandarte do  universo, daquele expert dos céus: "se alguém anuncia um novo dogma, seja  excomungado". Mas vemos como se eleva o coaxar de algumas rãs, o zumbido  desses mosquitos e essas moscas moribundas que são os pelagianos. Estes  dizem aos católicos: "Toma-nos por mestres vossos, por vossos chefes, por  vossos exegetas; condenai o que até agora tendes crido e credes no que até  agora tendes condenado. Rechaçai a antiga fé, os decretos dos Padres, o  depósito de vossos superiores, e recebei..." Recebei, o que? Causa-me horror  dizê-lo, pois suas palavras estão tão cheias de soberba que me parece cometer  um crime não só ele dizê-las, mas também refutá-las.  

Por que Deus permite que existam heresias na Igreja

10. Mas alguém poderá dizer: Por que Deus permite que com tanta freqüência  pessoas insignes da Igreja se ponham a defender doutrinas novas entre os  católicos? A pergunta é legítima e merece uma resposta ampla e detalhada. Mas  responderei fundamentando-me não em minha capacidade pessoal, mas na  autoridade da Lei divina e no ensinamento do Magistério eclesiástico. Ouçamos,  pois, a Moisés: que ele nos diga o porquê de vez em quando Deus permite que  homens doutos, inclusive chamados profetas pelo Apóstolo por causa de sua  ciência, se ponham a ensinar novos dogmas que o Antigo Testamento chama, em  seu estilo alegórico, de divindades estrangeiras. (Realmente os hereges veneram  suas próprias opiniões tanto como os pagãos veneram seus deuses). Moisés  escreve: "Se se levantar no meio de ti um profeta ou um visionário - ou seja, um  mestre confirmado na Igreja, cujo ensinamento seus discípulos e ouvintes crêem  ser proveniente de alguma revelação - anunciando-te um sinal ou prodígio, e  suceder o sinal ou o prodígio que anunciou..." (Dt 13,1-2a) Certamente, com estas  palavras se quer assinalar um grande mestre, de tanta ciência que pode fazer crer  a seus seguidores, que não somente conhece as coisas humanas, mas que  também tem a presença das coisas que superam ao homem. Era mais ou menos  isto que os discípulos de Valentim, Donato, Fotino, Apolinário e outros da mesma  laia acreditavam. E como continua Moisés? "...e te disser: vamos, sigamos outros  deuses que te são desconhecidos e prestemos-lhes culto," (Dt 13,2) Quem são  estes outros deuses senão as doutrinas erradas e estranhas? Que te são  desconhecidas, ou seja, novas e inauditas. E prestemos-lhes culto, ou seja,  acreditemos nela e as sigamos. Pois bem, o que diz Moisés neste caso? "...tu não  ouvirás as palavras desse profeta ou desse visionário;" (Dt 13, 3a) Mas eu lhes  ponho esta questão: Por que Deus não impede que se ensine o que Ele proíbe  que se escute? Então Moisés responde: "...porque o Senhor, vosso Deus, vos põe  à prova para ver se o amais de todo o vosso coração e de toda a vossa alma". (Dt  13,3b) Assim, pois, está mais claro que a luz do sol o motivo por que de vez em  quando a Providência de Deus permite mestres na Igreja que preguem novos  dogmas: porque o Senhor, vosso Deus, vos põe à prova. E certamente que é uma  grande prova ver um homem tido por profeta, por discípulo dos profetas, por  doutor e testemunha da verdade, um homem sumamente amado e respeitado,  que de repente se põe a introduzir ocultamente erros perniciosos. Tanto mais  quanto que não existe possibilidade de descobrir imediatamente esse erro, posto  que lhe apanha de surpresa, já que se tem de tal homem um juízo favorável por  causa de seu ensinamento anterior, e se resiste ao condenar o antigo mestre ao  qual nos sentimos ligados pela afeição.  

Exemplos de Nestório, Fotino e Apolinário  

  11. Chegando a este ponto, alguém poderá me pedir que contraste as palavras de  Moisés com exemplos tomados da História da Igreja. O pedido é justo e respondo  a seguir. Partindo, em primeiro lugar, de fatos recentes e bem conhecidos, poderia  alguém de nós imaginar a prova pela qual atravessou a Igreja, quando o infeliz  Nestório se converteu repentinamente de ovelha em lobo, começou a desgarrar o  rebanho de Cristo, ao mesmo tempo em que aqueles a quem ele mordia, o tendo  por ovelha, estavam assim mais expostos a seus mordiscos? Na verdade dificilmente podia passar pela cabeça de alguém que pudesse estar em erro quem  tinha sido eleito pela alta judicatura da corte imperial e tinha grande estima pelos  outros bispos. Rodeado de profunda afeição das pessoas piedosas e de uma  grande popularidade, todos os dias explicava publicamente a Sagrada Escritura, e  refutava os erros perniciosos dos judeus e pagãos. Quem não estava convencido  que de que um homem desta classe não ensinava a fé ortodoxa, que pregava e  professava a mais pura e sã doutrina? Mas sem dúvida para abrir caminho a uma  só heresia, a sua, tinha que perseguir todas as demais mentiras e heresias. A isto  precisamente se referia Moisés, quando dizia: "...porque o Senhor, vosso Deus,  vos põe à prova para ver se o amais de todo o vosso coração." Deixemos então  de lado Nestório, nele que sempre teve mais brilho de palavras que verdadeira  substância, mais resplendor que efetiva valentia, e ao qual o favor dos homens, e  não a graça de Deus, o fazia aparecer grande diante da estima do povo.  Recordemos melhor a quem, dotados de habilidade e do atrativo dos grandes  êxitos, se converteram para os católicos em ocasião de tentações não sem tanta  importância. Assim, por exemplo, sucedeu-se em Panônia nos tempos de nossos  Padres, quando Fotino tentou enganar a Igreja de Sirmio. Havia sido eleito bispo  com grande estima por parte de todos, e durante certo tempo cumpriu com seu  ofício como um verdadeiro católico. Mas chegou um momento em que, como  profeta ou visionário malvado sobre quem falava Moisés, começou a persuadir ao  povo de Deus que lhe havia sido confiado de que devia seguir a outros deuses, ou  seja, a novidades errôneas nunca antes conhecidas. Até aqui nada de  extraordinário. Mas o que era particularmente perigoso era o fato de que, para  esta empresa tão malvada, se servia de meios nada comuns. Com efeito, possuía  um agudo ingênio, riqueza de doutrina e ótima eloqüência; disputava e escrevia  abundantemente e com profundidade tanto em grego quanto em latim, como  mostram as obras que compôs em uma e outra língua. Por sorte, as ovelhas de  Cristo que lhe foram confiadas eram muito prudentes e estavam vigilantes no que  se refere à Fé Católica; imediatamente se recordaram das advertências de  Moisés, e ainda que admirassem a eloqüência de seu profeta e pastor, não se  deixaram seduzir pela tentação. Desde esse momento começaram a fugir, como  se fosse um lobo, daquele a quem até pouco tempo seguiram como guia do  rebanho. Além de Fotino, temos o exemplo de Apolinário, que nos põe em guarda  contra o perigo de uma tentação que pode surgir no seio mesmo da Igreja, e que  nos adverte de que temos de vigiar muito diligentemente sobre a integridade de  nossa fé. Apolinário introduziu em seus ouvintes a mais dolorosa incerteza e  angústia, pois por uma parte se sentiam atraídos pela autoridade da Igreja, e por  outra eram retidos pelo mestre ao qual estavam habituados. Vacilando assim entre  um e outro, não sabiam o lhes era conveniente fazer. Era, então, aquele um  homem de pouco o nenhum destaque? Pelo contrário, reunia tais qualidades que  se sentiam levados a crer nele, inclusive muito rapidamente em um grande  número de coisas. Quem poderia fazer frente a sua agudeza de ingênio, a sua  capacidade de reflexão e a sua doutrina teológica? Para se ter uma idéia do  grande número de heresias esmagadas, dos erros nocivos à fé desbaratados por  ele, basta recordar a obra insigne e importantíssima, de não menos de trinta livros,  com a que refutou, com grande número de provas, as loucas calúnias de Porfírio.  Nos alargaríamos demasiado se recordássemos aqui todas as suas obras; à mercê delas poderia ser igual aos mais grandes artífices da Igreja, se não  houvesse sido empurrado pela insana paixão da curiosidade a inventar não sei  que nova doutrina, a qual como uma lepra, contagiou e manchou todos seus  trabalhos, até o ponto de que sua doutrina se converteu em ocasião de tentação  para a Igreja, mais que de edificação. A doutrina destes hereges à primeira vista  parece que distingue despretensiosamente duas substâncias em Cristo, mas de  repente introduz duas pessoas, cometendo um crime inaudito, afirma que há dois  filhos de Deus, dois Cristos, um é Deus e o outro e homem, um é engendrado pelo  Pai, o outro é nascido da mãe. Por isso conclui que Maria Santíssima não pode  ser chamada Theotókos, Mãe de Deus, mas somente Christotokos, Mãe de Cristo,  pois quem dela nasceu não foi o Cristo que é Deus, mas o Cristo que é homem.  Somente alguém que não raciocina pode crer que Nestório, em seus escritos,  admite um só Cristo e prega uma só pessoa de Cristo. Na realidade, se expressou  de maneira enganosa, para poder mais facilmente insinuar o mal através do bem,  segundo nos diz o Apóstolo: "acarretou para mim a morte por meio do que é bom".  (Rm 7,13) Se em alguma parte de seus escritos proclama que crê em um só Cristo  e em uma só pessoa de Cristo, o diz somente para enganar. Na realidade afirma  que depois de haver nascido da Virgem, as duas pessoas se reuniram em um só  Cristo, mantendo assim que no tempo da concepção ou do parto virginal - e  inclusive durante um certo tempo após - haviam dois Cristos. Segundo isto, Cristo  havia nascido primeiro como um simples homem comum, sem estar contudo  associado na unidade de pessoa ao Verbo de Deus; só depois desceria nEla a  pessoa do Verbo que o assumiria. E se agora Cristo segue assumido na glória de  Deus, houve, não obstante, um tempo no qual não havia diferença alguma entre  Ele e os demais homens.  

A verdadeira fé trinitária e cristológica 

  12. Antes de seguir adiante, talvez se espere que me detenha a expor as  doutrinas heréticas daqueles a quem acabei de mencionar: Nestório, Apolinário e  Fotino. Na verdade isto sairia de meu intento, porque não propus a refutar os erros  um a um. Se fiz uso de alguns exemplos, o fiz para demonstrar com clareza e  evidência que o que disse Moisés é verdade, ou seja, para demonstrar que, se um  doutor da Igreja - um profeta, poderíamos dizer - que interpreta os mistérios  proféticos, procura introduzir alguma novidade na Igreja de Deus, é a Providência  Divina quem o permite para nos provar. Não obstante, não será inútil expor, de  passagem, as doutrinas dos hereges acima citados. Quanto a Fotino, diz que  existe um Deus único e somente, que deve ser entendido segundo a mentalidade  judaica. Nega, portanto, a plenitude da Trindade e mantém que nem o Verbo de  Deus nem o Espírito Santo são pessoas reais. Afirma, ademais, que Cristo foi  somente um homem que teve sua origem em Maria. Reafirma, de todas as  maneiras possíveis, que devemos honrar somente a pessoa de Deus Pai, e a  Cristo como puramente homem. Apolinário declara que está de acordo conosco  sobre a unidade da Trindade, ainda que logo, sobre este mesmo ponto, sua fé não  é de todo íntegra. Acerca da Encarnação do Senhor blasfema abertamente. Diz  que na carne de Nosso Senhor não havia realmente uma alma humana, ou se  havia, não tinha inteligência nem razão humanas. A carne do Senhor não foi tomada da carne da Santíssima Virgem Maria - afirma - mas que desceu do céu  ao seio da Virgem. Sempre inconcreto e vacilante, as vezes afirmava que esta  carne é coeterna ao Verbo de Deus, outras vezes que é criada pela divindade do  Verbo. Não admitia que em Cristo haja duas substâncias, uma divina e uma  humana, uma proveniente do Pai e outra da Mãe. Pensava realmente que a  mesma natureza do Verbo estava dividida, como se uma parte dEle  permanecesse eternamente em Deus, enquanto que outra parte tivesse se  encarnado. Assim, enquanto a verdade afirma que há um só Cristo, formado por  duas substâncias, ele sustentava, pelo contrário, que duas substâncias se  formaram de uma só divindade de Cristo.  

Nestório está infectado por um humor totalmente oposto ao de Apolinário.    

13. Estas são as coisas que Nestório, Apolinário e Fotino, como cães raivosos,  ladram contra a Igreja Católica: Fotino não admite a Trindade, Apolinário afirma a  convertibilidade da natureza humana do Verbo e nega a existência de duas  substâncias em Cristo, ao mesmo tempo em que não admite em Cristo uma alma  inteira, ou pelo menos não admite nela a inteligência e a razão, pretendendo que o  lugar da inteligência foi ocupado pelo Verbo de Deus; por último, Nestório diz que  houve sempre, ou ao menos durante um certo tempo, dois Cristos. Em troca, a  Igreja Católica, que pensa retamente acerca de Deus e acerca de nosso Salvador,  não profere blasfêmias nem contra o mistério da Trindade nem contra a  encarnação de Cristo. A Igreja adora uma só divindade na plenitude da Trindade e  a igualdade da Trindade em uma única e mesma majestade; professa um só  Cristo Jesus, não dois; o qual é igualmente Deus e homem. Crê que nEle há uma  só pessoa, mas duas substâncias; duas substâncias, mas uma só pessoa, porque,  admitindo dois Filhos, poderia parecer que a Igreja adora uma quaternidade e não  uma Trindade. Mas talvez seja necessário tratar com mais tempo e precisão este  ponto. Em Deus há uma só substância e três pessoas; em Cristo, duas  substâncias, mas uma só pessoa. Na Trindade há diversas pessoas, mas a  substância é uma; no Salvador há mais substâncias, mas a pessoa é única. De  que maneira há na Trindade diferentes pessoas e não há diferentes substâncias?  Porque uma é a pessoa do Pai, outra a do Filho, outra a do Espírito Santo; e, sem  embargo, o Pai, o Filho e o Espírito Santo não têm diferentes naturezas, mas uma  única e a mesma natureza. E como é que no Salvador há duas substâncias, mas  não duas pessoas? Porque, evidentemente, uma coisa é a substância divina e  outra a substância humana; sem embargo, a divindade e a humanidade não são  dois Cristos, mas um único e o mesmo Filho de Deus, uma só e mesma pessoa, a  de um único e mesmo Cristo e Filho de Deus. Da mesma forma que no homem  uma coisa é a carne e outra é a alma, e alma e corpo não formam senão um único  e mesmo homem. Em Pedro e Paulo uma coisa é a alma e outra é o corpo; mas o  corpo e a alma de Pedro não formam dois Pedros, nem existe um Paulo-alma e  um Paulo-carne, subsistentes cada um por uma dupla e diferente natureza, a da  alma e a do corpo. Assim, em um único e mesmo Cristo há duas substâncias, mas  uma é divina e a outra humana, uma procede de Deus Pai, a outra da Virgem  Mãe; a primeira é co-eterna e igual ao Pai, a segunda é temporal e inferior ao Pai;  uma é consubstancial ao Pai, a outra consubstancial à Mãe, sem embargo, é um único e mesmo Cristo em ambas as substâncias. Não temos, pois, um Cristo-Deus  e um Cristo-homem; o primeiro incriado e o segundo criado; um impassível e outro  capaz de sofrer; um igual ao Pai e outro inferior a Ele; um engendrado pelo Pai e o  outro pela Mãe. Existe um único e mesmo Cristo que é Deus e homem, incriado e  criado, imutável, impassível, mas que ao mesmo tempo está sujeito a mudanças e  sofrimentos; um único e mesmo Cristo, o qual é juntamente igual e inferior ao Pai,  gerado pelo Pai antes de todos os séculos e nascido da Mãe no tempo, perfeito  Deus e perfeito homem. Enquanto Deus, possui a plenitude da divindade;  enquanto homem, uma humanidade perfeita. Perfeita, repito, que compreende  alma e carne: uma carne verdadeira como a nossa, tomada da Mãe; uma alma  inteligente, dotada de pensamento e de razão. Em Cristo está, pois, o Verbo, a  alma e o corpo, mas tudo isso é um só Cristo, um único Filho de Deus, um único  Salvador e Redentor nosso. Um só Cristo, não por uma mistura corruptível da  divindade com a humanidade - por demais incompreensível - mas por uma total e  singular unidade de pessoa. Esta união não modificou nem transformou nem uma  substância nem a outra (que é o erro próprio dos arianos), senão juntou em uma  só coisa as duas naturezas, de modo que em Cristo permanecem eternamente  tanto a unicidade de uma só e mesma pessoa como também as propriedades  específicas de cada natureza. Daqui se segue que Deus não começou nunca a  ser corpo, nem o corpo cessará em nenhum momento de ser tal. O exemplo da  natureza humana pode nos dar alguma luz a respeito. Cada homem é composto  de alma e corpo, e assim será sempre, e nunca acontecerá que o corpo se  transforme em alma ou alma em corpo. Posto que cada homem viverá para  sempre daqui por diante, em cada um permanecerá necessariamente sempre a  diferença entre as duas substâncias. Assim também em Cristo, a propriedade  característica de cada substância persistirá por toda a eternidade, ficando sempre  a salvo a unidade de pessoa.  

Realidade da natureza humana de Cristo  

14. Posto que estamos usando com muita freqüência o termo "pessoa", e dizemos  que Deus se fez homem in persona, é preciso prestar atenção para que não  pareça estarmos afirmando que o Verbo de Deus assumira só externamente o que  é próprio da natureza humana, limitando-se a imitar nossas ações; e que não  tenha tomado parte na atividade humana como verdadeiro homem, mas só  aparentemente, como se faz no teatro, onde um só ator pode interpretar vários  personagens sem sê-los realmente. Cada vez que os atores imitam a conduta de  outros, ainda que reproduzam à perfeição seu modo de atuar e comportar-se, eles  não são os personagens representados. Na verdade, servindo-me de termos  profanos, quando um ator faz o papel de um sacerdote ou de um rei, ele não é  nem sacerdote e tampouco rei; encerrada a peça, deixa de existir também o  personagem representado. Longe de nós este ímpio e ignominioso insulto a  Cristo, próprio da demência maniqueísta. Estes pregadores de bobagens  fantásticas afirmam que o Filho de Deus, Deus mesmo, não assumiu realmente a  natureza humana, mas apenas uma aparência de homem em seus atos e em todo  seu comportamento. A fé católica,ao contrário, afirma que o Verbo de Deus se fez  homem até o ponto de assumir tudo que pertence à nossa natureza, e não por via de ficção ou de aparência, mas de uma maneira real e substancial. Os atos  humanos que levava a cabo eram atos próprios seus, e não imitação de atos de  outrem; seu atuar era expressão de seu ser. Como quando falamos, conhecemos,  vivemos, existimos, não imitamos aos homens, mas somos realmente nós  mesmos. Pedro e João, por exemplo, eram homens porque tal era seu ser, não  por imitação; Paulo não fingia ser Apóstolo ou Paulo; ele era Apóstolo, ele era  Paulo. Assim, o Verbo de Deus, assumindo e possuindo a carne, pregando,  atuando, sofrendo na carne - sem nenhum menosprezo da própria natureza divina  – se dignou mostrar que Ele não imitava ou fingia ser um homem perfeito, mas  que realmente era o que parecia: homem perfeito e não aparência humana. Assim  como a alma, unindo-se à carne, sem transformar-se em carne, não imita o  homem, mas o constitui realmente, assim também o Verbo de Deus, unindo-se à  natureza humana, sem modificar-se ou confundir-se com ela, se fez realmente  homem, não uma imitação ou uma aparência de homem. É preciso, pois, evitar  absolutamente dar ao termo "pessoa" um significado que suponha uma imitação,  uma diferença entre o que finge e o personagem objeto da ficção, na qual quem  atua não é nunca aquele a quem representa. Por isso, não ocorra nunca que  creiamos que o Verbo de Deus assumiu de maneira fictícia a natureza humana.  Pelo contrário, devemos crer que,permanecendo imutável sua substância divina,  assumiu uma natureza humana completa em si, que fez ser carne, homem,  realidade humana não simulada, mas verdadeira; não imaginária, mas entitiva;  não destinada a cessar de existir como ao término de uma apresentação teatral,  mas a persistir para sempre de maneira substancial.  

Maria, "Mãe de Deus"  

  15. Esta unicidade de pessoa em Cristo se atuou e foi perfeita não depois do parto  virginal, mas no próprio seio da Virgem. Portanto, devemos atender com todo  cuidado a professar não somente que Cristo é um, mas que sempre foi um. Seria  uma blasfêmia intolerável sustentar que agora Cristo é um, mas que durante um  determinado período de tempo existiram dois: um Cristo depois do batismo; dois,  entretanto, no momento do nascimento. Podemos evitar assim tão grande  sacrilégio apenas se cremos que o homem se uniu a Cristo na unidade de pessoa  já e desde o seio materno, no mesmo instante da concepção virginal, e não no  momento da ascensão ou da ressurreição, ou no momento do batismo. Em virtude  desta unidade de pessoa se atribui indiferentemente e de maneira indistinta ao  homem o que é próprio de Deus, e a Deus o que é próprio da carne. Por  inspiração divina foi escrito que o Filho do homem baixou do céu e que o Senhor  da majestade foi crucificado na terra. Assim nós dizemos que o Verbo de Deus foi  feito, que a Sabedoria mesma de Deus foi aperfeiçoada, que sua ciência foi  criada, quando é a carne do Senhor que foi feita, criada, como foi predito que suas  mãos e seus pés seriam transpassados. Por causa desta unidade de pessoa e em  razão deste mesmo mistério, é perfeitamente católico crer que quando nasceu a  carne do Verbo de uma Mãe incontaminada, foi o mesmo Deus Verbo quem  nasceu de uma Virgem. Negá-lo seria uma grande impiedade. Ninguém, pois,  pretenda jamais privar Maria Santíssima do privilégio desta graça divina e de uma  glória tão especial. Pelo querer determinado do Senhor, Deus nosso e Filho seu, devemos proclamá-la com toda verdade e acerto Theotokos, "Mãe de Deus". Não,  certamente, o entendendo no sentido de uma heresia ímpia, a qual sustenta que  Maria pode ser dita Mãe de Deus só de nome, enquanto que engendrou um  homem que depois se converteu em Deus; ao modo como usamos comumente a  expressão: mãe de um sacerdote ou mãe de um bispo, não porque estas  mulheres tenham engendrado a um presbítero ou bispo, mas porque puseram no  mundo homens que depois se fizeram sacerdotes ou bispos. Não neste sentido,  repito, Maria Santíssima é Mãe de Deus, mas, como se disse antes, porque em  seu sagrado seio se realizou o mistério sacrossanto pelo qual, em razão de uma  particular e única unidade de pessoa, o Verbo é carne na carne, e o homem é  Deus em Deus.  

Condenações e Bênçãos  

  16. Já é tempo de fazer uma breve síntese, para recordá-lo com maior facilidade,  de tudo o que temos dito acerca das heresias e da fé católica. Quando se repetem  as coisas, se compreendem melhor e se afixam mais profundamente na memória.  Condenação, pois, de Fotino, que rechaça a plenitude da Trindade e ensina que  Cristo foi pura e simplesmente um homem. Condenação de Apolinário, que  sustenta que a divindade de Cristo se transformou e se corrompeu, negando  assim a propriedade de uma humanidade perfeita. Condenação de Nestório, que  afirma que Deus não nasceu de uma Virgem, admite dois Cristos e, rechaçando a  fé na Trindade, nos propõe uma quaternidade. Bendita, entretanto, a Igreja  Católica, que adora a um só Deus na plenitude da Trindade e na igualdade das  Três Pessoas Divinas em uma única Divindade, de maneira que nem a unidade de  substância dilui a propriedade das Pessoas, nem sua distinção rompe a unidade  da Divindade. Bendita a Igreja, que crê que em Cristo há duas substâncias reais e  perfeitas, mas que é única a pessoa de Cristo; a distinção entre as duas naturezas  não divide a unicidade da pessoa, nem a unicidade de pessoa confunde as duas  diferentes naturezas. Bendita a Igreja, que para proclamar que Cristo é e tem sido  sempre um, professa que o homem se uniu a Deus no seio materno da Mãe, e  não depois do parto. Bendita seja esta Igreja, que compreende que Deus se fez  homem, não por uma modificação de sua natureza, mas em virtude da pessoa,  não de uma pessoa fictícia ou provisória, mas real e permanente. Bendita a Igreja,  que ensina que esta unicidade de pessoa é tão profunda que atribui ao homem,  por um mistério admirável e inefável, o que é de Deus e a Deus o que é do  homem. Em virtude desta unicidade, a Igreja não teme afirmar que o homem,  enquanto Deus, desceu do céu, e crer que Deus, enquanto homem, nasceu na  terra, padeceu e foi crucificado. Conseqüência desta unicidade, a Igreja confessa  que o homem é Filho de Deus e que Deus é Filho de uma Virgem. Bendita, pois, e  veneranda, bendita e sacrossanta é esta profissão de fé, totalmente comparável  ao louvor angélico que dá glória ao único Senhor Deus com uma trina exaltação  de sua divindade. A Igreja prega a unicidade de Cristo principalmente por isto:  para respeitar o mistério da Trindade. Tudo o que disse nessa digressão, se a  Deus apraz, tratarei de maneira mais ampla e completa em outra ocasião. Agora  voltemos a nosso tema. 

A queda de Orígenes  

  17. Dizíamos que na Igreja de Deus o erro de um mestre é uma tentação para os  fiéis; tentação tanto maior quanto mais douto é o que erra. Tenho provado isto  desde já com a autoridade da Escritura, depois com exemplos da história  eclesiástica, recordando aqueles homens que foram tidos durante certo tempo por  plenamente ortodoxos e que acabaram em uma seita acatólica ou inclusive  fundaram uma heresia. Este é um aspecto muito importante, e pelo mesmo é  necessário conhecer e ter sempre presente, inclusive ilustrado com grande  número de exemplos para que penetrem bem na mente, com o fim de que os  verdadeiros católicos saibam que devem receber aos Doutores com a Igreja, e  não abandonar a Igreja pelos Doutores. Poderia citar numerosos exemplos de tal  classe de tentação, mas penso que nenhum é comparável ao caso de Orígenes.  Possuía qualidades tão excepcionais e maravilhosas que qualquer um prestaria fé,  desde o primeiro momento, a todas as suas afirmações. Pois se a vida edifica a  autoridade da pessoa, ele foi um homem de grande laboriosidade, castidade,  paciência e constância incomuns. E se consideramos seu berço e sua ciência,  quem foi mais nobre que ele? Nasceu de uma família ilustrada pelo martírio, e  depois de ter sido privado de pai e de morada, por causa de Cristo, saiu adiante  em meio das estreitezas de uma santa pobreza, sofrendo com freqüência,  segundo nos contam sempre, por confessar o nome do Senhor. Possuía muitos  outros dotes, que depois se mudaram em motivo de tentação. Sua inteligência era  tão vasta, penetrante, aguda, nobre, que não tinha rival. Ademais, tinha tal  conhecimento da doutrina cristã e uma erudição tão grande que poucas coisas da  filosofia divina lhe escapavam, e quase nenhuma da humana havia que ele não  conhecesse profundamente. Sua ciência não se limitou às obras gregas, mas  também se estendeu às hebraicas. Devo recordar sua eloqüência? Era tão  agradável, pura, suave, que se podia dizer que era mel, não palavras, o que  destilavam seus lábios. Não havia questão difícil de expor que ele não tornasse  límpida com a força de seu raciocínio,nem coisas que pareciam áridas que ele não  as tornassem facílimas.  

- Mas não terá, talvez, construído suas obras e fundamentado suas asserções  somente sobre argumentos racionais?  

- Pelo contrário, nunca houve um mestre que tenha utilizado mais que ele a  Sagrada Escritura.  

- É possível que tenha escrito pouco.  

- Em absoluto! Nenhum mortal escreveu mais que ele, tanto que não é possível,  penso, não só ler todas suas obras, como nem sequer encontrá-las todas. E para  que não lhe faltasse nenhum meio para formar-se e aperfeiçoar-se na ciência,teve  o dom da plenitude dos anos.  

- Talvez tenha tido pouca sorte com seus discípulos...  

- Existiu alguém mais afortunado que ele? Inumeráveis são os doutores, os  bispos, confessores, os mártires saídos de sua escola. É verdadeiramente  impossível medir a admiração, a glória, o favor de que gozou por parte de todos.  Quem, por pouco religioso que fosse, não acudia a ele desde os mais remotos  rincões da terra? Sabemos pela história que era reverenciado não só pelas  pessoas privadas, mas também pelo próprio imperador. Se conta que a mãe do imperador Alexandre o fez chamar a seu lado por causa da sabedoria divina que  superabundava nele, e que ela desejava ardentemente conhecê-lo. Encontramos  outro testemunho nas cartas que escreveu, com autoridade de mestre, ao  imperador Felipe, primeiro príncipe de Roma; que se fez cristão. E se não se quer  dar crédito a nosso testemunho cristão sobre sua incrível ciência, escutemos ao  menos o que dela dizem os filósofos pagãos. O ímpio Porfírio narra que, sendo ele  ainda um menino, foi até Alexandria atraído pela fama de Orígenes, e ali o viu, já  muito avançado em idade, mas com tal classe e com tanta grandeza, que parecia  que ele havia construído a cidadela de toda a sabedoria. Mas se passaria uma  noite inteira antes que pudesse expor, nem sequer sucintamente, uma pequena  parte das virtudes insignes que se encontravam neste homem. Sem embargo,  todas estas qualidades não serviram somente para a glória da religião, mas  também para fazer a tentação mais perigosa. Ninguém se encontrava disposto a  abandonar a um homem de tão grande engenho, de doutrina e dotes tão exímios;  qualquer um repetiria a sentença: "É preferível estar equivocado com Orígenes  que ter razão com os demais". Se poderia acrescentar algo mais? A tentação que  esta grande personalidade, este doutor e profeta insigne provocou não foi de  pouca monta, mas foi de tal envergadura, como demonstra o resultado final, que  desviou a muitos da integridade da fé. Por ter abusado com temeridade da graça  de Deus, por ter feito concessões demais à sua inteligência e posto uma confiança  desmedida em si mesmo, por ter desconsiderado a antiga simplicidade da religião  cristã, presumindo, todavia, saber mais que os outros; por ter depreciado as  tradições da Igreja e o magistério dos antigos, interpretando de maneira  totalmente nova algumas passagens da Sagrada Escritura; por tudo isso Orígenes  - mesmo sendo tão eminente e extraordinário como era - mereceu que também a  propósito dele se lhe dissesse à Igreja de Deus: "Se no meio de ti se levanta um  profeta..., não escutes as palavras desse profeta..., porque está te provando Javé,  teu Deus, para ver se lhe amas ou não." E, por certo, não foi esta uma prova  indiferente para a Igreja que,confiando nele e arrebatada pela admiração de seu  engenho, de sua ciência, de sua eloqüência, de seu modo de viver, de sua  autoridade, sem suspeitar nada nem temer nada, se veria arrancada da antiga fé e  escorregar-se até novidades profanas. Alguém dirá: as obras de Orígenes foram  interpoladas e arranjadas. Concedo, e também desejaria que tivessem sido. Há  muitos que falam e escrevem sobre estas interpolações, e não só católicos, mas  também hereges. O que quero sublinhar e o fato de que, ainda que os livros não  tenham sido escritos por Orígenes, mas empregando seu nome, foram igualmente  ocasião de grande tentação. Formigam de afirmações ímpias, mas são lidos e  apreciados como se fossem de Orígenes e não de outrem. Assim, ainda que não  fora sua intenção emitir erros, sem embargo, estes foram difundidos sob a  autoridade de seu nome.  

O escândalo de Tertuliano  

18. O mesmo ocorreu com Tertuliano, que foi o maior entre os nossos latinos,  como Orígenes o foi entre os gregos. Quem foi mais douto que ele, quem mais  experto tanto nas coisas divinas quanto nas humanas? Com a maravilhosa  capacidade de sua mente se passeava pelo conhecimento de toda a filosofia, das escolas filosóficas, de seus fundadores e seguidores, de todas as suas disciplinas,  da história e dos mais variados ramos do saber. Dotado de um engenho forte e  profundo, não tinha dificuldade que se propusesse resolver que não a superasse  e a conquistasse com sua inteligência aguda e poderosa. Quem seria capaz de  louvar como se deve a estrutura e o estilo de suas composições? Tudo está nelas  concatenado com tal necessidade lógica, que obriga a assentir com ele a aqueles  a quem não consegue convencer. Se pode dizer que nele cada palavra é uma  sentença, cada afirmação uma vitória. Sabem muito bem isto os discípulos de  Marcion, de Apeles, de Praxeas, de Hermógenes, os judeus, os pagãos, os  gnósticos e todos os demais, cujas blasfêmias fulminou, demoliu e destruiu com  seus muitos e poderosos livros. Sem embargo, também ele, esse Tertuliano que  havia levado a cabo todas estas coisas por ter sido pouco tenaz em apegar-se ao  dogma católico, ou seja, a fé antiga e universal, e mais eloqüente que profundo,  ao final trocou suas idéias -como diz dele o bem-aventurado confessor Hilário -  "com esse erro final privou de toda autoridade seus louváveis escritos". Assim,  pois, também ele foi para a Igreja ocasião de grande tentação. Não quero  acrescentar mais, apenas recordar que por ter afirmado, sem ter em conta o  preceito de Moisés, que as novas fúrias de Montano surgidas na Igreja e as loucas  fantasmagóricas de mulheres delirantes de novos dogmas eram verdadeiras  profecias, mereceu que dele e de seus escritos se dissesse: "Se no meio de ti se  levanta um profeta..., não escutes as palavras desse profeta..." Por quê? "Porque  está te provando Javé, teu Deus, para ver se lhe amas ou não."  

Função providencial destes exemplos  

19. O número e a importância destes exemplos eclesiásticos, e de muitos outros  do mesmo gênero, não pode deixar de nos fazer prudentes, e nos mostram como  uma luz mais clara que a do sol que, segundo o que nos diz o Deuteronômio, se  um doutor se desvia da fé, é a Providência de Deus que o permite, para ver se  amamos a Deus com todo o coração e com toda nossa alma.  

O verdadeiro católico e o herege  

 20. De tudo que temos dito, aparece evidente que o verdadeiro e autêntico  católico é o que ama a verdade de Deus e a Igreja, corpo de Cristo; aquele que  não antepõe nada à religião divina e à fé católica: nem a autoridade de um  homem, nem o amor, nem o gênio, nem a eloqüência, nem a filosofia; mas que  depreciando todas estas coisas e permanecendo solidamente firme na fé, está  disposto a admitir e a crer somente o que a Igreja sempre e universalmente tem  crido. Sabe que toda doutrina nova e nunca antes ouvida, insinuada por uma só  pessoa, fora ou contra a doutrina comum dos fiéis, não tem nada a ver com a  religião, mas que melhor constitui uma tentação, doutrinado nisto especialmente  pelas palavras do Apóstolo Paulo: "É necessário que entre vós haja partidos para  que possam manifestar-se os que são realmente virtuosos." (1Cor 11,19) Como se  dissesse: Deus não elimina imediatamente aos autores de heresias, para que se  manifestem os que são de uma virtude provada, ou seja, para que apareça em  que medida cada um é tenaz, fiel, constante e nele mora a fé católica. E verdadeiramente, apenas um vento de novidades começa a soprar,imediatamente  se vê como os grãos coalhados de trigo se separam e se distinguem da casca  sem peso, e sem grande esforço é arrancado fora de lá o que não é sustentado  por peso algum. Alguns voltam imediatamente; outros, no entanto, transtornados e  desalentados, temem perecer, mas se envergonham de regressar, espancados  como estão e mais mortos que vivos; parece exatamente como tivessem bebido  uma dose de veneno que já não podem eliminar e que, ainda que não lhes mate  logo, não lhes permite seguir realmente vivendo. Situação desgraçada! Quantas  violentas aflições, quantas perturbações lhes assaltam! Já se deixam levar pelo  erro como um vento impetuoso; já se recolhem em si mesmos, como ondas na  tempestade, e são lançados na praia; outras vezes, com audácia temerária, dão  sua conformidade ao que é errado; em outros momentos, sob o impulso de um  medo irracional, se espantam até do que é verdade. Não sabem mais aonde ir,  aonde voltar, não sabem o que querem, não sabem do que devem fugir, não  sabem o que deve ser mantido e o que, ao contrário, deve ser rechaçado. E se ao  menos soubessem que estas dúvidas e esta angústia de um coração vacilante são  o remédio que a misericórdia divina lhes preparou! Por isto precisamente,  afastados do porto seguro da fé católica, são sacudidos, golpeados, como imersos  na tempestade, para que, recolhidas e amainadas as velas da mente, que  estavam estendidas ao largo e desdobradas aos ventos infiéis das novidades,  voltem a buscar morada no refúgio confiado de sua Mãe boa e tranqüila e,  rechaçadas as ondas amargas e alvoroçadas do erro, possam alcançar a fonte de  águas vivas e saltitantes e beber dela. Que "desaprendam" bem o que não fizeram  bem em aprender; e que compreendam, de todos os dogmas da Igreja, o que a  inteligência pode compreender;o que não podem compreender, que creiam.  

"Oh, Timóteo! Guarda o depósito!"  

  21. Pensando e repensando dentro de mim estas coisas, não deixo de admirar-me  ante a imensa loucura de alguns homens, ante a impiedade de sua mente cegada  e ante a paixão desenfreada do erro, que não lhes deixa satisfeitos com uma  norma de fé tradicional e recebida da antiguidade, mas que cada dia andam  buscando coisas novas e ardem continuamente em desejos de trocar, de  acrescentar, de tirar algo da religião. Como se esta não fosse um dogma celestial,  que já é suficiente que tenha sido revelado uma vez para sempre; como se fosse  uma instituição humana,que não pode chegar a ser perfeita a não ser mediante  assíduas emendas e correções. E, sem embargo, temos a Palavra Divina que  proclama: "Não passes além dos marcos antigos que puseram teus pais" (Pr  22,28); "Não julgues (o procedimento) de um juiz" (Eclo 8,17); e também: "Quem  cava uma fossa, pode nela cair, e que derruba um muro pode ser picado por uma  serpente". (Ecl 10,8).Ademais está o mandato do Apóstolo, com o qual, como se  fosse uma espada espiritual, têm sido decapitadas e o serão sempre todas as  malvadas novidades heréticas: "Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado!  Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa  ciência. Alguns, por segui-las, se transviaram da fé" (1Tm 6,20-21). Depois destas  advertências, haverá no entanto homens tão ousados e teimosos, de uma cabeça  mais dura que o aço, que não se dobrem sob o peso de tal eloqüência celestial, que não se sintam esmagados por semelhante autoridade, feitos pedaços por  marteladas como essas, reduzidos a cinzas por raios desta classe? "Evita - diz o  Apóstolo - as conversas frívolas e mundanas". Não diz a antiguidade, a vetustez.  Mostra claramente o contrário, se temos em conta as conseqüências do que se  tem dito: se deve-se evitar a novidade, tem que ater-se à antiguidade; se a  novidade é ímpia, a antiguidade é sagrada."(E) as contradições de pretensa  ciência". Verdadeiramente que somente como falsa ciência pode ser qualificada a  doutrina dos hereges, os quais mascaram sua própria ignorância chamando-a de  ciência, do tempo revolto dizem que está calmo, às trevas chamam-na luz.  "Alguns, por segui-las, se transviaram da fé". O que lhe anunciaram que lhes  fizeram prevaricar, senão uma doutrina nova e ignorada? Podes escutar como  dizem alguns: vinde, pobres ignorantes, os que sois comumente chamados  católicos, e aprendei a fé verdadeira, que, fora de nós, ninguém entende.  Permaneceu oculta durante muitos séculos, mas agora tem sido revelada e  manifestada. Mas a aprende em segredo. Lhes dará alegria. Uma vez que tenhais  aprendido, ensina a outros, mas ocultamente, para que não lhes odeie o mundo  nem o saiba a Igreja, porque somente a uns poucos lhes é dado conhecer o  segredo de tão grande mistério. Mas, por acaso não são estas as palavras que  lemos nos Provérbios de Salomão, dirigidas pela prostituta aos que passam e  vão ao seu caminho?: "Quem for simples venha para cá!" Já aos pobres de mente,  lhes exorta dizendo: "As águas furtivas são mais doces e o pão tomado às  escondidas é mais delicioso". Mas, o que também encontramos escrito? "Ignora  ele que ali há sombras e que os convidados [da senhora Loucura] jazem nas  profundezas da região dos mortos" (Pr 9,16-18). Quem são estes? Que diga o  Apóstolo: "os que vierem a perder a fé".  

A Igreja, guardiã fiel do Depósito  

22. Mas é proveitoso que examinemos com maior diligência esta frase do  Apóstolo: "Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas  frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência". (1Tm  6,20)Este grito é o grito de alguém que sabe e ama. Previa os erros que surgiriam  e se doía por ele enormemente. Quem é hoje Timóteo senão a Igreja universal em  geral, e de modo particular o corpo de bispos, os quais, principalmente, devem  possuir um conhecimento puro da religião cristã, e ademais transmiti-lo aos  demais? E o que quer dizer "guarda o bem que te foi confiado"? Esteja atento, lhe  diz, aos ladrões e aos inimigos; não suceda que enquanto todos dormem, venham  em oculto a lançar a cizânia no meio da boa semente que o Filho do homem  semeou em seu campo. Mas, o que é um depósito? O depósito é o que te foi  confiado, não encontrado por ti; vós o recebestes, não o excogitastes com tuas  próprias forças. Não é o fruto de teu engenho pessoal, mas da doutrina; não está  reservado para um uso privado, mas que pertence a uma tradição pública. Não  saiu de ti, mas que a ti veio: a seu respeito tu não podes comportar-se como se  fosse seu autor, mas como seu simples guardião. Não és tu quem o iniciou, mas  és seu discípulo; não te cabe dirigi-lo,mas é teu dever seguí-lo. Guarda o bem que  te foi confiado, diz; quer dizer, conserva inviolado e sem mancha o talento da fé  católica. O que te foi confiado é o que deve guardar junto a ti e transmitir. Recebeste ouro; devolve, pois, ouro. Não posso admitir que substituas uma coisa  por outra. Não, tu não podes desavergonhadamente substituir o ouro por chumbo,  ou tratar de enganar dando bronze em lugar de metal precioso. Quero ouro puro, e  não algo que só tenha sua aparência. Ó Timóteo! Ó sacerdote! Intérprete das  Escrituras, doutor, se a graça divina te deu o talento por engenho, experiência,  doutrina, deves ser o Beseleel do Tabernáculo espiritual. Trabalha as pedras  preciosas do dogma divino, reúne-as fielmente, adorna-as com sabedoria,  acrescenta-lhes esplendor, graça, beleza: Que tuas explicações façam que se  compreenda com mais claridade o que se ainda se crê de maneira bem obscura.  Que as gerações futuras se congratulem de terem compreendido por tua  meditação o que seus pais veneravam sem compreender. Mas hás de estar atento  a ensinar somente o que aprendeste: não suceda que por buscar maneiras novas  de dizer a doutrina de sempre, acabes também por dizer também coisas novas.  

O progresso do dogma e suas condições  

  23. Talvez alguém diga: então nenhum progresso da religião é possível na Igreja  de Cristo? Certamente que deve haver progresso, e grandíssimo! Quem poderá  sertão hostil aos homens e tão contrário a Deus que tentaria impedi-lo? Mas a  condição de que se trate verdadeiramente de progresso pela fé, não de  modificação. É característica do progresso de todas as maneiras possíveis à  inteligência, o conhecimento, a sabedoria, tanto da coletividade como do indivíduo,  de toda a Igreja, segundo as idades e os séculos; com tal de que isso suceda  exatamente segundo sua natureza peculiar, no mesmo dogma, no mesmo sentido,  segundo uma mesma interpretação. Que a religião das almas imite o modo de  desenvolvimento dos corpos, cujos elementos, ainda que com o passar dos anos  se desenvolvem e crescem, sem embargo permanecem sendo sempre eles  mesmos. Há grande diferença entre a flor da infância e a maturidade da velhice;  não obstante, quem agora é velho são os mesmos que foram adolescentes. O  aspecto e o porte de um indivíduo mudarão, mas se tratará sempre da mesma  natureza e da mesma pessoa. Os membros de um lactante são pequenos e  maiores os dos jovens, e seguem sendo os mesmos. Tantos membros têm os  adultos quanto têm as crianças; e se algo novo aparece em idade mais madura, já  pré-existia no embrião; assim, nada novo se manifesta no adulto que já não se  encontrasse de forma latente na criança. Não cabe nenhuma duvida de que este é  o processo regular e normal do progresso, segundo a ordem precisa e belíssima  do crescimento: o crescer na idade revela nos grandes as mesmas partes e  proporções que a sabedoria do Criador havia delineado nos pequeninos. Se a  forma humana adotasse com o tempo um aspecto estranho a sua espécie, se lhe  adicionasse ou lhe tirasse algum membro, necessariamente todo o corpo morreria  ou se faria monstruoso, ou ao menos se debilitaria. A estas mesmas leis de  crescimento deve seguir o dogma cristão, de modo que com o passar dos anos se  vá consolidando, se vá desenvolvendo no tempo,se vá tornando mais majestoso  com a idade, mas de tal maneira que siga sempre incorrupto e incontaminado,  íntegro e perfeito em todas as suas partes, e, por assim dizer, em todos seus  membros e sentidos, sem admitir nenhuma alteração, nenhuma perda de suas  propriedades, nenhuma variação no que está definido. Vejamos um exemplo. 

Nossos pais, no passado, semearam no campo da Igreja a boa semente da fé;  seria por demais injusto e inconveniente se nós, seus descendentes, em lugar de  trigo da autêntica verdade tivéssemos que replantar a cizânia fraudulenta do erro.  Em troca, é justo que a sega corresponda à semeadura que recolhemos, quando o  grão da doutrina chega à maturidade, o trigo do dogma. Se com o passar do  tempo, uma parte da semente original se desenvolveu alcançando felizmente a  maturidade plena, não se pode dizer que tenha mudado o caráter específico da  semente; pode se dar uma mudança no aspecto, na forma, uma formação mais  precisa, mas a natureza própria de cada espécie permanece intacta. Não suceda  jamais, pois, que os roseirais da doutrina católica se transformem em cardos  espinhosos. Não suceda jamais, repito, que neste paraíso espiritual de onde  brotam o cinamomo e o bálsamo, despontem às escondidas a cizânia e o acônito.  Tudo que a fé dos pais têm semeado no campo de Deus que é a Igreja, é o que  deve ser cultivado e guardado pelo zelo dos filhos; somente este deve florescer, e  não outra coisa; deve florescer e amadurecer, crer e alcançar a perfeição. É  legítimo que os antigos dogmas da filosofia celestial, ao correr dos séculos, se  afinem, se aparem, se lustrem; mas seria ímpio mudá-los, desfigurá-los, mutilá los. Adquirem, ao contrário, maior evidência, clareza, precisão; mas é necessário  que conservem sempre sua plenitude, integridade, propriedade. Se começa a  misturar o novo com o antigo, o estranho com o que é familiar, o profano com o  sagrado, em breve esta desordem se difundirá por todos os lados, e nada na  Igreja permanecerá intacto, íntegro, sem mancha; e onde antes se levantava o  santuário da verdade pura e incorrupta, exatamente neste lugar, se levantará um  prostíbulo de infâmias e torpes erros. Que a misericórdia divina mantenha  afastada da mente dos seus este crime; que isto não seja mais que uma loucura  dos ímpios. A Igreja de Cristo, guardiã vigilante e prudente dos dogmas que lhe  são confiados, não muda nada neles, nem lhes tira ou acrescenta nada; não  rejeita o que é necessário nem acrescenta o que é supérfluo; não deixa que  escape o que é seu nem se apropria do que pertence a outrem. Ao tomar  cautelosamente e com fidelidade e prudência as doutrinas antigas, só busca fazer  com sumo zelo o seguinte: reforçar o que tem sido expresso com precisão;  guardar o que tem sido confirmado e definido. Na realidade, que fim se propôs  obter sempre a Igreja com os decretos conciliares, senão que se creia com maior  conhecimento o que antes já se cria com simplicidade; que se pregue com maior  insistência o que antes se pregava com menor empenho; que se venere com  maior solicitude o que já antes se honrava com demasiada calma? Isto e não outra  coisa tem feito sempre a Igreja com os decretos dos concílios, provocada pelas  inovações dos hereges: transmitir à posteridade em documentos escritos o que  fora recebido de nossos pais mediante somente a tradição; resumir em fórmulas  breves uma grande quantidade de noções e, mais freqüentemente, com o fim de  ilustrar a inteligência, especificar com termos novos e apropriados uma doutrina  não nova.  

Estar atentos ante os hereges  

24. Então voltemos à exortação do Apóstolo: "Ó Timóteo, guarda o bem que te foi  confiado! Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência." Evita, disse-lhe, como se faz com uma víbora, comum  escorpião, com um basilisco, para que não somente o contato, mas nem sequer  sua vista ou seu sopro te firam. Agora bem: o que significa evitar? "Com tais  indivíduos nem sequer deveis comer". (1Cor 5,11) E também: "Se alguém vier a  vós sem trazer esta doutrina- e que doutrina é esta senão a católica universal, que  permanece sendo única e a mesma através dos séculos, em uma incorrupta  tradição de verdade, e que permanecerá assim sempre - não o recebais em vossa  casa, nem o saudeis. Porque quem o saúda toma parte em suas obras más". (2Jo  1,10-11) O Apóstolo nos falava de novidades profanas nas expressões (N. do  T.:na tradução para o português usou-se a Bíblia Ave Maria, que apresenta este  versículo: Evita as conversas frívolas e mundanas). Agora bem, profano é o que  não tem nada de sagrado nem de religioso, e é totalmente estranho ao santuário  da Igreja, templo de Deus. As novidades profanas nas expressões são, pois, as  novidades concernentes aos dogmas, coisas e opiniões em contraste com a  tradição e a antiguidade; sua aceitação implicaria necessariamente a violação  pouco menos que total da fé dos Santos Padres. Levará necessariamente a dizer  que todos os fiéis de todos os tempos, todos os santos, os castos, os continentes,  as virgens, os clérigos, os levitas e os bispos, os milhares de confessores, os  exércitos de mártires, um número imenso de cidades e de povos, ilhas e  províncias, de reis, de pessoas, de reinos enações, em uma palavra, o mundo  inteiro incorporado a Cristo cabeça mediante a fé católica, durante um grande  número de séculos tinha ignorado, errado, blasfemado, sem saber no que deveria  crer. Evita, pois, as novidades profanas ns expressões, já que recebê-las e segui las nunca foi costume dos católicos, e sim dos hereges. Na verdade, que heresia  não tenha surgido sob um nome num lugar e numa época determinadas? Quem  jamais tenha fundado uma heresia sem se separar assim do acordo com a  universalidade e a antiguidade da Igreja Católica? Os exemplos nos mostram isto  de maneira evidente. Com efeito, quem nunca, antes do ímpio Pelágio, teve a  presunção de atribuir ao livre-arbítrio o poder tão grande de pensar que o auxílio  da graça não é necessário para cada um dos atos, para levar a cabo as boas  obras? Quem, antes de seu monstruoso discípulo Celestino, negou que todo o  gênero humano está contaminado pelo pecado de Adão? Antes do sacrílego Ário,  quem teve a audácia de rasgar a unidade da Trindade ou de confundi-la, como o  pérfido Sabélio? Antes do rígido Novaciano, quem tinha dito que Deus era cruel,  porque preferia a morte do agonizante a que ele se convertesse e vivesse? Quem,  antes de Simão Mago, duramente castigado pela reprimenda apostólica - e de  quem provém a antiga enxurrada de torpezas que, por sucessão ininterrupta e  oculta, tenha chegado até Prisciliano - se atreveu a dizer que Deus criador é o  autor do mal, ou seja, de nossos delitos, de nossas impiedades, de nossos vícios?  Este afirma que Deus, com suas próprias mãos, cria a natureza estruturada de  maneira que, por movimento espontâneo e sob o impulso de uma vontade  necessitada, não pode mais, não quer mais que pecar. Agitada e incendiada pelas  fúrias de todos os vícios, se vê arrastada com ânsia inesgotável aos abismos de  toda sorte de crimes. Exemplos como estes existem e não acabam mais, mas  deixemo-los para sermos breves. Demonstram a todos com evidência que a  atitude normal e comum de qualquer heresia é gozar-se nas novidades profanas e  sentir repulsa pelos dogmas da antiguidade, até o ponto de naufragar na fé por causa de discussões de uma falsa ciência. Ao contrário, é próprio dos católicos  guardar o depósito transmitido pelos Santos Padres, condenar as novidades  profanas e, como muitas vezes repetiu o Apóstolo, descarregar o anátema sobre  quem tem a audácia de anunciar algo diferente do que foi recebido.  

Os hereges recorrem à Escritura  

25. Mas alguém se dirá: então os hereges não se servem dos testemunhos da  Sagrada Escritura? Certamente que se servem, e com tão apaixonada veemência!  Os vemos passar de um livro a outro da Lei Santa: desde Moisés aos livros dos  Reis, desde os Salmos aos Apóstolos, desde os Evangelhos aos Profetas. Em  suas assembleias, como estranhos, em privado, em público, nos discursos e nos  escritos, durante as refeições e nas praças públicas, é raro que mantenham  alguma coisa sem que antes não a tenham revestido com a autoridade da  Sagrada Escritura. Basta ler as obras de Paulo de Samosata, de Prisciliano, de  Eunomio, de Joviniano e de todas as outras pestes; imediatamente se nota o  cúmulo infinito de textos bíblicos: quase não há página que não esteja colorida e  assinalada com citações do Antigo e do Novo Testamento. Mas se torna mais  necessário estar em vigilância e temer-lhes quando mais tentam ocultar-se e  esconder-se sob a sombra da Lei Divina. Efetivamente, sabem que suas  exalações pestilentas, desnudadas e diretas, não encontrariam o favor de  ninguém; por isso as perfumam com o aroma da palavra celestial, já que quem  facilmente rejeitaria um erro humano não está disposto a depreciar com tanta  facilidade os oráculos divinos. Fazem o que aqueles que, para suavizar a  amargura dos remédios destinados às crianças, untam de mel a borda do frasco;  as crianças com a simplicidade ingênua de sua idade, uma vez que provaram o  doce, bebem sem suspeitar nem temer o amargo. Da mesma maneira atuam  quem mascaram com nomes medicinais ervas nocivas e sucos venenosos, para  que ninguém, ao ler a etiqueta, possa suspeitar que se trata de venenos e que não  são remédios para cuidar da saúde. A este propósito o Salvador gritava: "Guardai vos dos falsos profetas. Eles vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro  são lobos arrebatadores".(Mt 7,15) Que outra coisa são estas peles de ovelhas  senão as palavras dos Profetas e dos Apóstolos, com as quais estes mesmos,  com mansa simplicidade, revestiram como um véu ao Cordeiro imaculado que tira  o pecado do mundo? Quem são, ao contrário, os lobos vorazes, senão as  doutrinas selvagens e raivosas dos hereges, que infectam o redil da Igreja, para  desgarrar, da melhor maneira possível, o rebanho de Cristo? Para surpreender  mais facilmente as incautas ovelhas, mascaram seu aspecto de lobos, ainda que  conservando sua ferocidade, vestindo-se com frases da lei Divina como a um véu,  para que, ao sentir a brandura da lã, as ovelhas não suspeitem de seus dentes  afiados. Mas, o que nos diz o Salvador? "Pelos seus frutos os conhecereis." (Mt  7,16) Quer dizer, quando já não se dão por satisfeitos em citar e pregar as  palavras divinas, e então começam a explicar e comentá-las, se manifestará sua  amargura, sua aspereza e sua raiva; então se exalará um novo odor e aparecerão  as novidades ímpias; então se verá pela primeira vez as setas arrancadas e  ultrapassados os limites postos pelos pais; ultrajada a fé católica e o dogma da  Igreja feito em pedaços. Pessoas desta ralé eram as fustigadas pelo Apóstolo em sua segunda carta aos Coríntios: "Esses tais são falsos apóstolos, operários  desonestos, que se disfarçam em apóstolos de Cristo," (2Cor 11,13) Que significa  "se disfarçam em apóstolos de Cristo"? Os Apóstolos citavam textos da Lei Divina,  e aqueles faziam o mesmo; os Apóstolos se apoiavam na autoridade dos Salmos  e dos Profetas, e aqueles também. Mas quando começaram a interpretar de  maneira diferente os mesmos textos, então se distinguiram os sinceros dos  falsários, os genuínos dos artificiais, os retos dos perversos, em uma palavra, os  verdadeiros Apóstolos dos falsos. "O que não é de espantar - explica São Paulo -  Pois, se o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz, parece bem normal que  seus ministros se disfarcem em ministros de justiça " (2Cor 11,14-15). Segundo o  ensinamento do Apóstolo, cada vez que os falsos apóstolos, os falsos profetas, os  falsos doutores citam passagens da Lei Divina com as quais, as interpretando mal,  buscam apontar seus erros, não cabe dúvida de que seguem a tática pérfida de  seu autor e mestre, o qual certamente não a usaria se não compreendesse que  não há melhor caminho para induzir ao engano aos fiéis, que introduzir  fraudulentamente um erro cobrindo-o com a autoridade das palavras divinas.  

A Escritura na boca de Satanás  

26: Alguém poderia então perguntar: como se explica que o diabo utilize as  citações da Sagrada Escritura? Não precisa mais que abrir o Evangelho e ler.  Encontrará escrito: "O demônio transportou-o - ao Senhor - à Cidade Santa,  colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: "Se és Filho de Deus, lança-te  abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; proteger-te ão com as mãos, com cuidado,para não machucares o teu pé em alguma pedra  (Sl 90,11s)". (Mt 4,5-6)O que não fará a nós, pobres mortais, aquele que teve a  ousadia de assaltar, com testemunhos da Escritura, ao mesmo Senhor da  majestade? "Se és Filho de Deus - disse-lhe - lança-te abaixo." Por quê? "Porque  está escrito..."Devemos prestar muita atenção à doutrina aqui exposta e retê-la  bem em nossas mentes, para que, postos em vigilância pela autoridade de um  exemplo evangélico tão grande, não duvidemos nem por um instante que é o  diabo quem fala pela boca daqueles que citam contra a fé católica passagens dos  Apóstolos e dos Profetas. Então era a cabeça quem falava à Cabeça, agora são  os membros que fala mãos membros; ou seja, os membros do diabo aos membros  de Cristo, os renegados aos fiéis, os sacrílegos aos homens piedosos, os hereges  aos católicos. Mas o que eles dizem? Se tu és o Filho de Deus, lança-te abaixo.  Ou seja, se queres ser realmente filho de Deus e receber a herança do reino  celestial, lança-te abaixo de cima da doutrina e da tradição desta Igreja sublime,  templo de Deus. E se alguém pergunta a qualquer herege que quer persuadi-lo da  verdade disto: Em que provas te fundamentas para afirmar que eu devo  abandonar a antiga e universal fé da Igreja Católica? Imediatamente responderá:  "Está escrito", e sem mais amontoará mil testemunhos, mil exemplos, mil  argumentos com os quais, interpretados de nova e errada maneira, buscará  precipitar a alma do desgraçado desde o alto da rocha católica ao abismo da  heresia. Mas é com promessas como as que agora vamos mostrar que os hereges  costumam enganar, com uma arte que é uma verdadeira maravilha, aqueles que  não estão prevenidos. Efetivamente, ousam prometer e ensinar que em sua igreja, ou melhor, em seu conventículo de sua seita, está presente uma graça de Deus  extraordinária, especial, absolutamente pessoal; e é de tal classe que sem fadiga,  sem esforço, sem ansiedade alguma, inclusive ainda que não peçam, nem  busquem, nem almejem, todos os que fazem parte de seu número obtém de Deus  esse auxílio, até o ponto de serem levados por mãos angélicas e guardados por  sua proteção, sem que seu pé nunca tropece em alguma pedra, ou seja, sem  sofrer escândalo.  

Como vencer as insídias diabólicas dos hereges  

27. Depois de tudo que temos dito, seria lógico perguntar: se o diabo e seus  discípulos - os falsos apóstolos, profetas, mestres e hereges em geral - costumam  utilizar as palavras, as sentenças, as profecias da Escritura, como deverão se  comportar os católicos, os filhos da Madre Igreja? Que deverão fazer para  distinguir nas Sagradas Escrituras a verdade do erro? Tenham grande  preocupação por seguir as normas que, ao início destas notas escrevi, foram  transmitidas por doutos e piedosos homens; ou seja, interpretarão o Cânon divino  segundo as tradições da Igreja universal e as regras do dogma católico; na  mesma Igreja Católica e Apostólica deverão seguir a universalidade, a antiguidade  e a unanimidade de consenso. Por conseguinte se acontecesse que uma parte se  rebelasse contra a universalidade, que a novidade se levantasse contra a  antiguidade, que a dissensão de um ou poucos equivocados se elevasse contra o  consenso de todos ou ao menos de um número bem grande de católicos, se  deverá preferir a integridade da totalidade à corrupção de uma parte; dentro da  mesma universalidade, será preciso preferir a religião antiga à novidade profana;  e, na antiguidade, há que antepor à temeridade de pouquíssimos os decretos  gerais, se os há, de um concílio universal; no caso de que não os tenha, se deverá  seguir o que próximo esteja deles, ou seja, as opiniões concordes de muitos e  grandes mestres. Se, com a ajuda do Senhor, observamos com fidelidade e  solicitude estas regras, conseguiremos descobrir sem grande dificuldade, e desde  sua mesma fonte, os erros nocivos dos hereges.  

Os Padres e a Tradição Católica  

28. Penso que talvez seja oportuno demonstrar, por meio de exemplos, como  podem ser descobertas e condenadas as novidades heréticas, investigando e  confrontando entre si as opiniões concordes dos antigos mestres. De todos os  modos, é evidente que este consenso antigo e unânime dos Santos Padres não  devemos invocá-lo apenas em questões minuciosas da Lei Divina; mas que será  objeto da mais ativa investigação e adesão só no que se refere à regra da fé. Nem  tampouco todas as heresias, de todos os tempos, podem ser combatidas desta  maneira; somente as novas e mais recentes, em sua primeira floração e em suas  primeiras manifestações, antes de que, pela mesma escassez de tempo, tenham a  possibilidade de falsear a regra antiga da fé e de infeccionar com seu veneno os  livros dos Padres. Em relação àquelas que já foram difundidas e já fincaram raízes  profundas, não podem ser combatidas por este caminho, porque o largo prazo de  tempo de que dispuseram foi ocasião mais que favorável para erodir a verdade, e por isso é que as impiedades mais antigas, tanto heréticas como cismáticas, não  podemos refutá-las mais que com a autoridade da Escritura, ou evitá-las desde  que já estão refutadas e condenadas por antigos Concílios universais do  Episcopado Católico. Apenas, pois, começa a se estender a podridão de um novo  erro e este, para justificar-se, se apodera de alguns versículos da Escritura, que  ademais interpreta com falsidade e fraude, é preciso imediatamente abrir mão  das sentenças dos Padres interpretando as passagens em questão; com seu  auxílio, qualquer novidade profana será no ato desmascarada sem nenhuma  ambigüidade e condenada sem vacilação. Em relação aos Padres, deve-se  consultar o pensamento de quem santamente, sabiamente e com constância  viveu, ensinou e permaneceu firme na fé e na comunhão católica, e morreram fiéis  a Cristo ou mereceram a alegria de dar sua vida por Ele. Mas a estes se deve  prestar fé seguindo esta regra: o que todos, ou ao menos a maioria, têm afirmado  claramente, através de concílio de mestres perfeitamente unânimes, e que têm  confirmado ao aceitá-lo, conservá-lo e transmiti-lo, isso é o que deve ser mantido  como indubitável, certo e verdadeiro. Ao contrário, tudo que, fora da doutrina  comum, e inclusive contra ela, tenha pensado um apenas, ainda que seja um  santo e um douto, um bispo, um confessor, um mártir, deve ser relegado entre as  opiniões pessoais, não oficiais, privadas, que não tem a autoridade da opinião  comum, pública e geral; não nos suceda, com sumo perigo para nossa salvação  eterna, que abandonemos a antiga verdade da doutrina católica para seguir o erro  novo de um só indivíduo, segundo o sacrílego costume dos hereges e cismáticos.  Para que não haja quem se atreva a depreciar este acordo sagrado e universal  dos Padres, o Apóstolo escreveu em sua primeira carta aos Coríntios: "Na Igreja,  Deus constituiu primeiramente os apóstolos (ele era um deles), em segundo lugar  os profetas (como lemos nos Atos dos Apóstolos que era Ágabo), em terceiro  lugar os doutores" (1Cor 12,28), mas o mesmo Apóstolo às vezes os chama  profetas, porque explicam ao povo cristão os mistérios da mensagem profética.  Quem quer que se atreva a depreciar a estes homens postos por Deus em sua  Igreja segundo os lugares e os tempos, e que estão de acordo na interpretação do  dogma católico, não estará depreciando a um homem, mas ao próprio Deus. E  com o fim de que ninguém esteja em desacordo com sua unidade, a única  verdadeira, o mesmo Apóstolo disse: "Rogo-vos, irmãos, em nome de nosso  Senhor Jesus Cristo, que todos estejais em pleno acordo e que não haja entre vós  divisões. Vivei em boa harmonia, no mesmo espírito e no mesmo sentimento"  (1Cor 1,10). E se alguém deixa de estar de acordo com sua doutrina, escute o que  diz o Apóstolo: "Porquanto Deus não é Deus de confusão, mas de paz". (1Cor  14,33) Ou seja, não é Deus de quem rompe a unidade e a concórdia, mas de  quem permanece na paz de um só sentimento. "Como em todas as igrejas dos  santos" (1Cor 14,34), ou seja, dos católicos, e são coisas santas precisamente  porque permanecem na comunhão da fé. E com o propósito de que ninguém se  arrogue a pretensão de ser ele somente escutado e crido, sem ter em conta aos  demais, pergunta: "Porventura foi dentre vós que saiu a palavra de Deus? Ou veio  ela tão-somente para vós?" (1Cor 14,36). Ademais, para evitar que suas palavras  fossem tomadas à ligeira, acrescenta: "Se alguém se julga profeta ou agraciado  com dons espirituais, reconheça que as coisas que vos escrevo são um  mandamento do Senhor". (1Cor 14,37) Mas de que mandamentos se trata, senão de qualquer um que seja profeta o pessoa espiritual, ou seja, mestre das coisas  espirituais, deve ter o maior cuidado em cultivar a imparcialidade e a unidade, a  fim de que não chegue a preferir sua opinião pessoal à dos demais ou a separar se do sentimento comum? "Mas - adverte o Apóstolo - se alguém quiser ignorá-lo,  que o ignore!" (1Cor 14,38) ou seja, quem não aprende as coisas que não sabe ou  se desfaz das que sabe, será tido por indigno de ser incluído por Deus no número  daqueles que estão unidos na fé e iguais na humildade. Se poderia pensar um mal  tão grande? Precisamente isto é o que, como sabemos,ocorreu, de acordo com a  ameaça do Apóstolo, ao pelagiano Juliano, que se negou a compartilhar a doutrina  de seus colegas e teve a presunção de separar-se deles. Mas é chegado o  momento de trazer à luz o exemplo a que nos referimos, e mostrar onde e de que  maneira, por decreto e autoridade de um concílio, recorreu-se às opiniões dos  Padres, com o fim de fixar, seguindo-as, a regra de fé da Igreja. Para maior  comodidade, ponho aqui fim a estas notas. O resto tratarei em uma segunda  parte.  

(N.do.T: O segundo "Commonitorium" desapareceu; não ficou dele mais que a segunda parte, que é uma  simples recapitulação e que acrescentamos a seguir.)  

É legítimo recorrer aos Padres  

29. Creio ter chegado o momento de recapitular ao final deste segundo  Comonitório tudo o que foi tratado nos dois Comonitórios. No primeiro disse que  os católicos tiveram sempre o costume, e continuam tendo, de determinar a  verdadeira fé de duas maneiras: com a autoridade da Escritura divina e com a  tradição da Igreja Católica. Não porque a Escritura, por si só, não seja suficiente  em todos os casos, mas porque muitos, interpretando a seu capricho as palavras  divinas, acabam por inventar uma quantidade incrível de doutrinas errôneas. Por  este motivo é necessário que a exegese da Escritura divina seja guiada pela única  regra do sentir católico, especialmente nas questões que tocam os fundamentos  de todo o dogma católico. Também afirmei que na mesma Igreja é necessário ter  em conta a universalidade e a antiguidade, com o fim de que não nos suceda que  nos separemos da unidade do conjunto e acabarmos desagregados, no  fragmentarismo particularista do cisma, ou nos precipitarmos, desde a antiga fé,  em novidades heréticas. Disse ainda, em relação à antiguidade, que é preciso a  todo custo ter presente duas coisas e se agarrar a elas profundamente se não  queremos nos converter em hereges; primeiro: ver se houvera antigamente algum  decreto por parte de todos os bispos da Igreja Católica, emanado sob a autoridade  de um concílio universal; depois, no caso de que surja uma nova questão, em  torno da qual não se encontre nada definido, recorrer às sentenças dos Padres,  mas somente a aqueles que, por haverem permanecido, em seu tempo e lugar,  dentro da unidade da comunhão e da fé, se converteram em mestres provados.  Tudo aquilo que se encontre e que tenha sido por eles mantido com unanimidade  de sentir e de consenso pode ser submetido sem temor algum como expressão da  verdadeira fé católica. Como poderia parecer que eu afirmava estas coisas por  minha conta,porém baseando-me na autoridade da Igreja, fiz referência ao  exemplo do Santo Concílio ocorrido há três anos em Éfeso, na Ásia, sob o consulado dos preclaros Basso e Antíoco. No curso das discussões que ali se  tiveram para estabelecer a regra da fé,com o fim de evitar que uma novidade  ímpia se insinuasse do mesmo modo que se levou a cabo a perfídia de Rimini,  pareceu a todos os bispos, reunidos em número de quase duzentos, que o melhor  procedimento, o mais católico e o mais conforme a fé, era o de remeter-se às  sentenças dos Santos Padres, alguns dos quais foram mártires, outros  confessores, de tal modo que de todos eles houvera constância de que foram  bispos católicos e que perseveraram como tais. Fortalecidos por seu consenso, foi  confirmada por decreto, em devida forma e solene, a antiga fé, e condenada a  blasfêmia da nova impiedade.À luz deste procedimento, e com todo direito e  merecidamente, o ímpio Nestório foi julgado por estar em desacordo com a  antiguidade católica, e o bem aventurado Cirilo em comunhão com a santíssima fé  antiga. Para que nada faltasse à fidelidade dos fatos que narrei, proporcionei  também os nomes e o número dos padres (ainda que tenha trocado a ordem), de  conformidade com cuja sentença unânime foram interpretadas as palavras da  Sagrada Escritura, e foi confirmada a regra da fé divina. Penso que não será  supérfluo voltar a recordar, para refrescar minha memória.  

Os Padres citados em Éfeso  

30. Eis aqui, pois, os nomes daqueles cujos escritos foram citados naquele  Concílio como juízes e testemunhas. São Pedro bispo de Alexandria, doutor  insigne e mártir; Santo Atanásio, bispo da mesma cidade, mestre fidelíssimo e  confessor exímio; São Teófilo, também bispo de Alexandria, célebre por sua fé,  vida e ciência; seu sucessor, o venerável Cirilo, que atualmente ilustra a igreja  alexandrina. E para que não se pensasse que aquela era a doutrina de uma só  cidade ou província, se recorreu também às celebérrimas luminárias da  Capadócia: São Gregório, bispo de Nanziano e confessor;São Basílio, bispo  de Cesaréia da Capadócia e confessor; o outro Gregório, bispo de Nissa, por fé,  costumes e sabedoria realmente digno de seu irmão Basílio. Ademais, para  demonstrar que não apenas a Grécia e o Oriente, mas também o Ocidente, o  mundo latino, tinha mantido a mesma fé, foram lidas algumas cartas de São Félix  Mártir e de São Júlio, bispos da cidade de Roma. Mas não somente a cabeça do  mundo, também as partes secundárias proporcionaram seu testemunho àquela  sentença. Dos meridionais foi citado o beatíssimo Cipriano, bispo de Cartago e  mártir; das terras do Norte, Santo Ambrósio,bispo de Milão e confessor. Sem  dúvida poderia citar um número maior de Padres, mas não foi necessário. Não  era, com efeito, conveniente ocupar o tempo numa multidão de textos, desde o  momento em que ninguém duvidada de que a opinião daqueles dez era a de todos  os demais colegas.  

O Concílio de Éfeso proclamava a antiga fé  

31. Ademais, consignei as palavras do bem-aventurado Cirilo, tal como estão  contidas nas mesmas Atas eclesiásticas. Elas dizem que, apenas foi lida a carta  de Capreolo, o santo bispo de Cartago, que não pedia nem desejava mais que se  rejeitasse a novidade e se defendesse a antiguidade, tomou a palavra o bispo Cirilo. Não parece inútil que cite aqui de novo suas palavras. Segundo está escrito  ao final das Atas, ele disse: "A carta do venerando e religiosíssimo bispo de  Cartago, Capreolo, que nos foi lida, deve ser incluída nas Atas oficiais. Pois seu  pensamento é claríssimo: quer que sejam confirmados os dogmas da antiga fé e  reprovadas e condenadas as novidades inutilmente excogitadas e impiamente  pregadas. Todos os bispos o aprovaram em altas vozes: essas palavras são  nossas, expressam o pensamento de todos nós, este é o voto de todos". Quais  eram, pois, as opiniões de todos? Quais os desejos comuns? Que se mantivesse  tudo o que havia sido transmitido desde a antiguidade e se rejeitasse o que  recentemente se havia acrescentado. Foi admirado e proclamado a humildade e a  santidade desse Concílio. Os bispos reunidos ali em grande número, a maior parte  dos quais eram metropolitas, possuíam uma tal erudição e doutrina, que podiam  quase todos discutir sobre questões dogmáticas, e o fato de se encontrarem todos  reunidos pôde lhes animar e lhes afirmar na sua capacidade para deduzir por si  mesmos. Ao contrário, se preocuparam por todos meios de transmitir à  posteridade somente o que receberam dos Padres, com o fim não somente de  resolver bem as questões do presente, mas também de oferecer às gerações  futuras o exemplo de como se devem venerar os dogmas da antiguidade sagrada  e condenar as novidades ímpias. Também foi impugnado a presunção criminosa  de Nestório, que seu fanava de ter sido o primeiro e o único a compreender a  Sagrada Escritura, tachando de ignorantes a todos aqueles que, antes dele,  investidos do ofício do Magistério, explicaram a Palavra Divina, ou seja, a todos os  bispos, a todos os confessores, a todos os mártires. Alguns destes tinham  explicado a Lei de Deus,outros haviam aceitado as explicações que lhes deram e  prestaram fé. Ao contrário,segundo o parecer de Nestório, a Igreja se equivocara  sempre, e continuava equivocando-se por ter seguido, segundo ele, a doutores  ignorantes e heréticos.  

Intervenções de Sixto III e de Celestino I contra as inovações ímpias  

32. Ainda que todos estes exemplos são mais que suficientes para destroçar e  aniquilar as novidades ímpias, sem embargo, para que não possa parecer que  falta alguma coisa a tão grande número de provas, acrescentei ao final dois  documentos da Sé Apostólica: um do Santo Papa Sixto, que na atualidade ilustra  a Igreja de Roma, e outro de seu predecessor de feliz memória, o Papa Celestino.  Creio ser necessário reproduzir aqui também estes dois documentos. Na carta que  o santo Papa Sixto enviou ao bispo de Antioquia a propósito de Nestório,  escreveu: "Posto que o Apóstolo disse que uma é a fé (cfr. Ef 4,5), a fé que se  impôs abertamente, acreditamos no que devemos falar e pregamos o que  devemos manter". Queremos saber o que é aquilo que devemos crer e pregar?  Ouçamos o que ele diz a seguir: "Nada é lícito à novidade, porque nada é lícito  acrescentar à antiguidade. A fé límpida de nossos pais e sua religiosidade não  devem ser turvadas por nenhuma mistura de lama". Sentença verdadeiramente  apostólica, que descreve a fé dos pais como limpidez cristalina, e as novidades  ímpias como mistura de lama. No Papa Celestino encontramos o mesmo  pensamento. Na carta que enviou aos bispos das Gálias, os censurava que, de  fato, estavam coniventes com os propagadores de novidades, enquanto que seu silêncio culpável vinha a aviltar a fé antiga e permitia, por conseguinte, que se  difundissem as novidades ímpias. "Com toda razão - diz - devemos nos considerar  responsáveis se, com nosso silêncio, favorecemos o erro. Estes homens devem  ser repreendidos; não têm a faculdade de pregar livremente!" A alguns poderia  lhes explicar a dúvida acerca da identidade das pessoas a quem está proibido  pregar como lhes apraz: se serão os pregadores da antiga fé ou os inventores de  novidades. Que o próprio Papa fale e resolva as dúvidas dos leitores. Com efeito,  acrescenta: "Se isso é verdade...", quer dizer se é verdade isso de que alguns os  têm acusado, ou seja, que vossas cidades e províncias acolhem as novidades, "se  isso é verdade, que a novidade cesse de lançar impropérios e acusações contra a  antiguidade". O venerando parecer do bem-aventurado Celestino não foi, pois, que  a fé antiga deixasse de opor-se com todas as suas forças à novidade, mas que  esta parasse já de molestar e perseguir a antiguidade.  

Conclusão  

33. Qualquer um que se oponha a estas decisões apostólicas e católicas, ofende  ante tudo a memória de São Celestino, o qual decretou que a novidade devia  cessar de acusar a antiga fé; se burla do juízo de São Sixto, que decretou que não  poderia tolerar as novidades, porque não se pode acrescentar nada à antiguidade;  por último, deprecia a decisão do bem-aventurado Cirilo, que louvou em alta voz o  zelo do venerando Capreolo, desejoso de que os dogmas da antiga fé fossem  confirmadas e condenadas as invenções inovadoras. O mesmo Sínodo de Éfeso  seria violado, quer dizer, as definições dos Santos Bispos de todo o Oriente, os  quais, divinamente inspirados, decretaram que a posteridade não deveria crer ou  coisa mais que o que a antiguidade sagrada dos Santos Padres, unanimemente  concordes em Cristo, havia mantido. Com altas vozes e aclamações todos a uma,  deram testemunho de que a sentença, o desejo, o juízo de todos era que, do  mesmo modo que foram condenados os hereges anteriores a Nestório, por  depreciar a fé antiga e manter novidades, fosse também condenado Nestório, que  igualmente era autor de novidades e adversário da antiguidade. Se alguém é  contrário a este consenso unânime, que foi santamente inspirado pela graça  celeste, se segue que julga condenada injustamente a impiedade de Nestório.  Como última e lógica consequência, deprecia como lixo a toda a Igreja de Cristo e  a seus Mestres, Apóstolos e Profetas, de maneira especial ao Apóstolo Paulo, que  escreveu: "Oh, Timóteo, guarda o depósito evitando as novidades profanas nas  expressões". E também: "Qualquer um que os anuncie um Evangelho diferente do  que haveis recebido, seja anátema". Assim, pois, se as decisões dos Apóstolos e  os decretos da Igreja não podem ser transgredidos – em virtude dos quais,  segundo o consenso sagrado da universalidade e da antiguidade, todos os  hereges têm sido sempre e justamente condenados - em consequência, é dever  absoluto de todos os católicos, que desejam demonstrar que são filhos legítimos  da Mãe Igreja, aderir-se, agarrar-se à fé dos Santos Padres, e morrer por ela, ao  mesmo tempo em que detestam, tem horror, combatem, perseguem as novidades  ímpias. Isto é tudo o que, mais ou menos, expus nos dois Comonitórios, e que  resumi aqui brevemente. Desta forma, minha memória, cujo auxílio escrevi estas 

notas, poderá consultá-las com freqüência e tirar proveito, sem sentir-se agoniada  por uma expressão prolixa.  

(FIM DA OBRA) 

* * *  

O AUTOR 

Sabemos pouco sobre a vida de São Vicente de Lerins. Foi um Padre da Igreja do  século V. Possuem-se escassos dados sobre sua vida; apenas os de uma breve  notícia que lhe dedica o marselhês Genádio (De viris illustribus, 64; PL58,1097-98)  e os que se desprendem de sua obra mais importante: o Comonitório. Era de  origem francesa, ainda que se ignore seu local de nascimento e onde passou sua  vida, somente que, se fez religioso uma vez "afugentados os ventos da vaidade e  da soberba, aplacando a Deus com o sacrifício da humildade cristã". Teve um  passado tempestuoso, como parece deduzir-se de certa alusão que faz em um de  seus livros? Não é seguro, possivelmente a ênfase que põe em suas palavras  deve-se pôr em conta a severidade com que os santos costumam julgar-se a si  mesmos. O que sim é indubitável é que foi um homem muito douto nas Escrituras  e nos dogmas e com profundos conhecimentos das letras clássicas. Sacerdote no  mosteiro da ilha de Lerins (chamada hoje de São Honorato), como o pseudônimo  de Peregrino compôs um tratado contra os hereges. Genádio narra também que é  autor de outra obra de tema análogo, cujo manuscrito foi roubado, e que elaborou  um breve resumo, que foi conservado. Morreu no reinado de Teodósio e  Valentiniano, pouco antes de 450. O Comonitório foi escrito três anos depois do  Concílio de Éfeso, ou seja, em 434. Somente duas obras lhe são atribuídas com  certeza: O Commonitorium primum, cujo título mais antigo é "De Peregrino em  favor da antiguidade e universalidade da fé católica contra as profanas novidades  de todos os hereges", e o Commonitorium secundum, recapitulação do livro que  foi roubado. Lhe é atribuído também uma outra entitulada "Objectiones lerinianae",  cujo conteúdo conserva Próspero de Aquitana (Pro Augustino responsiones al  capitula objectionum vicentianarum: PL 51,177-186), e um florilégio de frases de  Santo Agostinho concernentes ao mistério da Santíssima Trindade e da  Encarnação, que conserva o Cód. 151 de Ripoll sob o seguinte título: "Excerpta  sanctae memoriae Vicentiilirinensis insulae presbyteri ex universo beatae  recordations Augustini in unumcollecta."  

O COMMONITORIUM  

Este pequeno livro, cheio de vigor e ciência, tem atraído a atenção dos estudiosos  sobretudo a partir do século XVI, e suas afirmações têm sido levadas em conta  nos momentos de confusão doutrinal, desde as polêmicas entre protestantes e  católicos do séc. XVII até a crise modernista, porque nele se encontra um  excelente testemunho cristão e resposta ante os riscos do ceticismo e do  relativismo teológico. Com efeito, os temas chave do tratado são: fidelidade à  Tradição e progresso dogmático. O Comonitório é um dos livros que mais história 

tem deixado sobre si. Hoje passam de 150 edições e traduções em diversas  línguas. A palavra Comonitório (Commonitorium), bastante freqüente como título  de obras naquela época, significa notas ou apontamentos postos por escrito para  ajudar à memória, sem pretensões de compor um tratado exaustivo. Nesta obra,  São Vicente de Lerins se propôs facilitar, com exemplos da Tradição e da história  da Igreja, os critérios para conservar intacta a verdade católica. Não recorre a um  método complicado. As regras que oferece para distinguir a verdade do erro  podem ser conhecidas e aplicadas por todos os cristãos de todos os tempos, pois  se resumem em uma excelente fidelidade à Tradição viva da Igreja. O Comonitório constitui uma jóia da literatura patrística. Seu ensinamento fundamental é que os  cristãos devem crer "quod semper, quod ubique,quod ad omnibus" - somente e  tudo quanto foi crido sempre, por todos e em todas as partes.  

Vários Papas e Concílios confirmaram com sua autoridade a validade perene  desta regra de fé. Segue sendo plenamente atual este pequeno livro escrito em  uma ilha da França, há mais de quinze séculos. 


Mosteiro Ortodoxo de São Bento - Poços de Caldas - MG - Brasil